Maria João Avillez
Peneda lembra o Torres do Benfica, de quem
se dizia que era “o Torres, sempre ele”. Hoje é “o Peneda, sempre ele” mas ao
contrário: sem cabeça e a meter golos na própria baliza. Um diabo, embora pobre
1. Tudo tão
previsível. Atamancava-se um acordo, contava-se com a sempre afetuosa
cumplicidade de Belém, montava-se um cerco chamado TSU ao PSD e evocava-se a
“concertação”, talvez a pátria, certamente o interesse nacional. Depois a mídia
ampliaria tudo isto, dividindo, adulterando, elegendo os “bons”, decretando os
“maus” e alugando figurantes para o coro do cerco.
Como o Peneda, sempre ele.
Lembra-me o Torres que jogava no Benfica e, com a sua alta estatura, evitava de
cabeça que as bolas furassem a baliza encarnada. Era “o Torres, sempre ele”.
Hoje também é “o Peneda, sempre ele”, mas ao contrário: sem cabeça e a meter
golos na própria baliza. Um diabo, embora pobre.
2. O outro diabo,
que é óptimo, aprecia estas tensões e é exímio debaixo de fogo, saiu por cima.
Queriam-no vestido com a farda de contínuo de um frete político, deplorável
equívoco a somar a outros, mas isso é a ficção onde vive enrolada a geringonça.
O mais pasmoso são, porém,
duas coisas: primeiro o fingimento. Um acordo político, falsamente vendido como
negociado (?), pretensamente já fechado (?) e supostamente abençoado do alto. E
depois a arrogante convicção — nunca sequer maculada pela dúvida — de que era
só Passos Coelho assinar de cruz esta trapalhada que “agradaria aos patrões” e
pronto, rumava-se até ao próximo episódio. Isto é, à próxima pirueta, ao
próximo equívoco.
Sobre os patrões, já agora
convém lembrar que não comovem especialmente: alguém os viu aflitos,
constrangidos ou sonoramente discordantes da geringonça? Não. Um dia estão com
a AD de Passos e Portas, no outro, o que lá vai, lá vai: a vida continua com
socialistas e comunistas, porque não? Desde que tenham, de cada vez, o número
do telemóvel do ministro das Finanças no bolso, e o chapéu de chuva do Estado,
tudo segue. A quem infundem eles respeito, a quem surgem como espelho de uma elite
sólida e substancial? Quem os considera com um grupo coeso, com norte e
critério? Quase ninguém (há exceções, já sei, há sempre, são as que confirmam a
regra).
Mais que chorar sobre o leite
sempre derramado dos “patrões”, mais que detalhar a bondade deste suposto
acordo de “concertação” para baixar a TSU a única coisa que interessa focar
nesta história é que a realidade ultrapassou a ficção: o PS achou mesmo, achou
a sério, que podia dispor (descartavelmente, claro), do apoio do maior partido
da oposição. Sem consulta prévia ou sequer pré-aviso político. Do pé para a mão
e como coisa natural, recomendável e verosímil de fazer em política. A ninguém
acudiu a necessidade ou a utilidade política de conversa alguma entre ambos os
partidos, as suas direções ou os seus líderes.
No atabalhoamento em que vive,
dividido e com futuro a prazo, o PS achou – oh maravilha reveladora – que tinha
o PSD no bolso, não é verdade que o tema da TSU até lhes tinha sido caro e que
acalentaram aplicar mesma medida? Era e não era, mas não sei o que mais
surpreende neste falhanço: se o que ele revela politicamente do comportamento e
do estado de espírito dos socialistas; se o facto de ninguém (aparentemente,
pelo menos) de entre esse grande contingente que é o PS se afligir com o estado
das coisas vigente. Pelo contrário.
3. Eis algumas
dessas coisas: a alta das taxas de juro, por exemplo. Li que Ferro Rodrigues
considera (santo Deus) que a governação, o país, a geringonça, o PS e as
muletas radicais do Executivo, nada tinham ver como este galope. Nada? Nada: as
culpas são alheias e externas, claro está. Sendo certo que poderá haver causas
exteriores, falta confessar – e assumir – o resto que é muito: fosse a
governação dona de melhores e mais avisadas escolhas em vez de obsessivamente
reverter toda a herança recebida, começando aliás por dilapidá-la, e as taxas
de juro não exibiriam agora os algarismos assustadores que aí estão. De resto
lembro aqui o exemplo da Espanha (podia dar outros na Europa), onde as taxas de
juro não sobem e o investimento é (escandalosamente!) maior.
O pior é que muito
provavelmente todos os “eles” responsáveis por este grande espetáculo de
felicidade a crédito que é o nosso acreditam que Ferro sabe do que fala e tem
razão no que diz.
O caso do IVA da restauração e da sua muito considerável descida para 13% também dá que pensar na sua flagrante previsibilidade. É que os resultados não coincidem hoje com a vozearia unânime que reclamava ontem tal medida, como garantia potenciadora de magníficos resultados no emprego. Segundo um responsável pela restauração, a mudança operada deu “oxigénio” (?) às empresas e serviu “para contratar um ou outro trabalhador”. Um ou outro, repare-se. É dizer do modo como essas mesmíssimas empresas têm vindo a utilizar o novo “oxigénio”.
E as capitações efetuadas pelo
Governo? Os números que as contabilizam deixam qualquer um sem palavras. Outro truque,
mas este mete respeito. E agora? Como compensar – como e quando – os
destinatários naturais daquele dinheiro?
Alguém tem ido aos hospitais?
A comunicação social não com certeza. As exaltadas acusações a Paulo Macedo de
que estamos todos bem lembrados e o afã, totalmente inverossímil de resto, em
fazer dele o “assassino” do Serviço Nacional de Saúde desaguou agora num
silêncio domesticado e num (muito) conveniente alheamento da questão. Pura e
simplesmente ela deixou de existir. Os hospitais devem fortunas aos
fornecedores? Há serviços que não estão a corresponder? Existem “urgências”
entupidas ou paralisadas devido ao fecho de alguns centros de saúde? Listas de
espera humilhantes para cirurgias? Má orientação e deficiente organização?
Gastos a subir e qualidade a baixar? Paciência. Deixaram de ser notícia. Logo,
“não existem”. Mesmo que o Governo ande a toda a hora com a palavra “justiça”
na boca. (Para quem?)
4. E finalmente: o
investimento. Não há. Continua a não “se” confiar. O país não “apetece”, os
protagonistas da sua condução política parecem que também nem apetecem nem
cativam os investidores. Sem investimento substancial a ameaça de uma economia
anã é cada vez mais real e realmente assustadora.
Esperam-se mais truques. De
alguma coisa a geringonça se há de alimentar para sobreviver.
Mas não tem importância. Há
“serenidade”, garantida pelo estonteantemente pouco sereno Presidente da
República.
5. É verdade e é
vox populi (dita embora em tom baixo, como aqueles que mentem nas sondagens)
que Passos Coelho não se saiu mal da empreitada da TSU. O PSD adorou vê-lo, a
bancada rejubilou e seguiu-o, e os portugueses que mentem nas sondagens,
tomaram boa nota. A questão desta “vitória” é interessante pelas outras que
abre e desde logo a de saber o que fazer politicamente com ela.
Não basta ter todos os dias um
bocadinho de razão a mais do que na véspera.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador,
20-1-2017
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