Aparecido Raimundo de Souza
QUEM ENTRA NA MINHA SALA AVISTA do lado direito da parede, quase colado entre à porta de acesso e às
estantes abarrotadas de livros, um quadrinho simples com uma moldura humilde
dependurado. Não traz o nome do autor. Nenhum Rembrandt, tampouco Caravaggio,
menos ainda Vincent van Gogh. Não lembra,
em nenhum momento, “A Ronda Noturna”, Judite e Holofernes, tampouco “A Criação
de Adão”. Não traz, no mesmo complexo, a data de quando fora pintado. O
quadrinho retrata uma casinha bonita, de cores vivas e alegres, de frente para
um lago de águas mansas.
Aos fundos, uma cadeia de montanhas parece tocar suavemente o céu. Em
derredor, um emaranhado de árvores coloridas se faz abundante e multíplice,
para todos os lugares onde as vistas alcançam o que transmite ao coração de
quem o contempla, uma mansidão excepcional. Quem ali reside, acredito, deve ter
o privilégio único de desfrutar de uma paz amplamente acolhedora, seguida de
uma tranquilidade apurada e invulneravelmente sacrossanta.
O painel, na verdade é cópia de uma pintura em papel comum. Presente que ganhei nesta manhã de um dia
especial, de alguém igualmente distinto e benemérito na minha vida. Não deve
ter custado muita coisa, tenho certeza, pois foi comprado quase que às pressas,
numa dessas lojinhas de R$ 1.99. Contudo, para mim, teve e terá, não importa o
tempo que passe, mais validade ou legitimidade que todas as outras lembranças
recebidas.
Mesmo dia, pouco depois das duas horas da tarde, mamãe me trouxe um
cordão de ouro com um pingente suspenso. Um Cristo na cruz. Da namorada, se bem
recordo, me vi agraciado com uma linda e vistosa camisa de seda. Do meu irmão
veio uma calça jeans. Minha neta me encheu os olhos com um vidro de perfume e
meu sobrinho tirou da mochila um conjunto com loção, lâminas, cremes e espuma
de barbear, segundo ele, um kit completo de sobrevivência para viagens.
Até uma amiga de longa data que não dava sinais de vida marcou em cima,
não deixando passar a data em branco. Capitaneou para a minha coleção de boas
músicas, um CD do Roberto Carlos numa caixinha que achei deveras engraçada.
Para a aquisição desse cordão de ouro, penso que mamãe deve ter expendido uma
boa soma de seu minguado salário de aposentada, e, com certeza, por causa dessa
extravagância, irá pagá-lo mensalmente em suaves prestações a se perderem de
vista.
Adorei seu gesto, porque mãe zelosa e prestimosa que sempre foi, ou
melhor, que sempre é e continuará sendo, nas horas amargas, naquelas bem
aflitas, se faz fiel e companheira, se abre em mesuras e bajulações no instante
em que mais precisamos de um colo amigo. Minha Rainha nunca perde e creio,
jamais deixará de lado, no esquecimento, a mania sagrada de querer estar sempre
agradando a seus rebentos, ainda que a depois se aperte com as outras despesas
oriundas das suas necessidades mais prementes.
Juntando a camisa de seda, a calça jeans, o vidro de perfume, o kit loção
e cremes pós barbear e o CD do Roberto Carlos, com certeza, em valores pagos,
não chegarão, se somados na ponta do lápis, aos pés do que custou o vistoso
cordão. O que estou querendo deixar claro, com a grana que mamãe empatou no
adorno, eu compraria tudo o que ganhei e o faria em dose dupla, ou talvez
tripla, e ainda sobrariam uns trocados para a pipoca, o refrigerante e as
entradas do cinema com a minha cara metade.
Não é isso o que quero deixar registrado aqui. O que marcou,
sobremaneira, o que não vai sair da minha cabeça, nunca, ainda que passem mil
anos, sem dúvida alguma, o quadrinho. Presente despretensioso atrelado a um
gesto partido de uma alma inocente, pura, de amor incondicional de filha para
pai, sem os rebusques, sem os enfeitados, sem as bordaduras e os adereços da
sedução que pressionam as pessoas adultas.
Não quero dizer que o cordão de ouro não me alegrou. Longe disso. Amei.
Amei de paixão. Inesquecível! Aliás, todos os mimos que me chegaram pela data,
é bom que se diga, foram recebidos e contemplados com o devido respeito e a
mais lídima vênia. Não só pela sua significância, como também pelas pessoas que
se dispuseram a abrir mão de seus afazeres e vir até aqui em casa me abraçar e
ajudar a cantar os parabéns, apagar as velinhas, tomar um copo de refrigerante
e ajudar na cortada do bolo.
O quadrinho, todavia... Meu Deus, o quadrinho simples, bucólico, singelo,
modesto, cândido, mexeu comigo. Mais que isso. Representa a minha verdade numa
busca sem fim. Recorda, em paralelo, que todo dia, toda hora, cada minuto, cada
segundo é um recomeço. Esse quadrinho marcou profundamente meu dia. Meu dia,
essa data tão especial. Digo mais: marcou meu interior.
Meu todo, por dentro, está em festa, em regozijo, em júbilo, numa
incandescência tão ferrenha que me é difícil descrever com palavras. Esse
quadrinho que agora enfeita o pórtico da minha sala me faz sentir o cara mais
feliz na face da terra. Esse agrado incomensurável me foi dado por minha filha
Amanda.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila
Velha, no Espírito Santo. 7-1-2020
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