Se um rei é cretino, o facto resulta do carácter fortuito do regime – e o povo não tem culpa. Se um presidente é cretino, o povo tem, além da culpa, precisamente aquilo que merece.
Alberto Gonçalves
A maior tragédia da nossa época é a valorização cega da mudança. O maior mérito de Isabel II [foto] foi escapar a essa perigosa crendice e tentar resistir-lhe. Conseguiu-o? Claro que não, ou claro que sim: durante o seu longuíssimo reinado o mundo mudou imenso, umas vezes para melhor, em geral para pior. O mundo mudou, ela não. E através do silêncio que lhe competia e da maneira digna como o administrou, a rainha de um império extinto emprestou-nos uma pequenina ilusão de permanência, um lugar simbólico e sereno a que se podia regressar após cada desmiolada vaga de voluntarismo e esquecimento. Enquanto tudo nos fugia, Isabel II continuava lá. E se isso não era remédio, pelo menos servia de consolo, um consolo que nem sabíamos que tínhamos. Com a sua morte, morrem também alguns dos últimos laços que prendiam este tempo a tempos precedentes, e lhe conferiam a continuidade e a memória necessários para que a existência não perca o sentido por inteiro.
A resistência de Isabel II começou, literal e paroquialmente, em casa, por cuja porta os descendentes introduziram um espetacular desfile de patetas, desde a famosa “Princesa do Povo” até a outra atriz que se casou com o benjamim daquela, passando por uma Sarah que terminou em “reality shows”. As patetas em questão, que invariavelmente se proclamaram vítimas do que calha exceto da falta de noção do ridículo, não desmerecem os cavalheiros que as desposaram. A rainha não teve sorte. Teve decência, e pairou acima do elenco de telenovela com as doses adequadas de integridade e desprezo. Por fortes e recorrentes que fossem os abalos do populismo, Isabel II aguentou-os e assegurou a sobrevivência da instituição a que devotou 70 anos. Não parece fácil e não é fácil.
A vida de Isabel II não foi
fácil. Os pasmados contemplam a realeza, a realeza a sério e cumprida com
seriedade, e, com doçura ou rancor, invejam-lhe a ostentação e a vida cheia. Eu
preferiria ser cozinhado vivo por canibais das Ilhas Fiji, de que aliás a
rainha de Inglaterra era a soberana. Sempre seria mais rápido, bastante mais
rápido do que sete décadas a abdicar do próprio destino em prol dos aspectos
alegóricos de uma mitologia coletiva e fatalmente alheia. Sobretudo não concebo
alternativa pior a um quotidiano interminável de protocolos, sacrifícios, salamaleques
e escrutínios. Uma pessoa vê as filmagens de Isabel, em criança, a brincar com
os cães e pergunta-se se Isabel, a monarca, voltou a fazê-lo com tamanho
desprendimento e alegria. Quantas viagens inúteis a rainha realizou? Em quantas
cerimónias dilacerantes a rainha participou? Quantas nulidades a rainha recebeu
e se viu forçada a entreter? Milhares, milhares e milhares.
Em 2016, salvo o erro, a pobre
senhora encontrou-se com o prof. Marcelo, que confessou tê-la visto em 1957 em
Lisboa, era ele petiz. Espantou-me que o prof. Marcelo não lembrasse a Sua
Majestade que o petiz envergava calções, hoje a peça dominante do seu
vestuário. Não me espantou a violenta falta de tino que o levou a sublinhar a
diferença de idades. A rainha, que não fazia ideia dos modos do indivíduo à sua
frente, respondeu à má-criação com um “Tenho a certeza que sim!” Depois o prof.
Marcelo mencionou o Terreiro do Paço e o general Craveiro Lopes, referências
que a rainha acompanhou com o conhecimento e o interesse que eu dedico à
geografia do “Senhor dos Anéis”. As imagens divulgadas do encontro duram 38
segundos, que chegam e sobram para inspirar duas ou três considerações sobre
regimes e tal.
Não sou, nunca fui monárquico.
Nunca experimentei a mínima curiosidade alusiva ao folclore e às intrigas do
Palácio de Buckingham. Fora dez minutos, que me adormeceram, nunca vi “The
Crown” ou similares. Não sendo igualmente republicano, concordo com os republicanos
quando acusam a monarquia de ser injusta e aleatória. É verdade que ninguém
consegue prever as competências de uma criatura designada à nascença, ou perto
disso, para chefiar, ainda que tacitamente, o Estado. Henrique VIII revelou-se
psicopata, Jorge III revelou-se maluquinho. Nas repúblicas, psicopatas e
maluquinhos acontecem, e meros tontos abundam. A nuance é a legitimação pelo
voto, que permite a escolha e, logo que se aceite a razão da maioria, a exata
conformação da vontade popular ao chefe eleito. No processo de sucessão, e em
contextos democráticos, a república não é intrinsecamente mais eficaz que a
monarquia: é só mais justa. Para o bem e, com frequência, para o mal. Ou seja,
se um rei é cretino, o facto resulta do carácter fortuito do regime – e o povo
não tem culpa. Se um presidente é cretino, o povo tem, além da culpa,
precisamente aquilo que merece. Suspeito que inúmeros britânicos não mereciam
Isabel II.
Sem nada que o garantisse,
Isabel II foi uma líder extraordinária, à altura, se não acima, das
extraordinárias circunstâncias que testemunhou. Após a sua morte, olha-se em
redor, no Reino Unido e no resto, nas monarquias e nas repúblicas, e o que há
são líderes ordinários, incapazes de enfrentar circunstâncias banais: ao
contrário de um rochedo, temos grãozinhos de areia, não por acaso o material
que lhes enche as cabeças. A rainha não pertencia ao nosso tempo, e, digam o
que disserem as notícias, não deixou herdeiros.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
10-9-2022, 0h21
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