quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Não é não

Henrique Pereira dos Santos

Há muitas maneiras de dizer não, a escolhida por alguns obstetras do Hospital de Santa Maria consistiu em ir embora

A história é conhecida, há umas alterações na maternidade do Hospital de Santa Maria, há oposição e críticas públicas de parte dos médicos trabalhavam nesse serviço, incluindo as suas chefias, a administração do hospital decide demitir as chefias e manter as alterações, determinando que as equipas do serviço têm de se conformar com as suas decisões de gestão e há seis médicos que, passado algum tempo, pedem rescisão de contratos e vão à suavida.

Nada disto é extraordinário, é o normal nas organizações e nas pessoas, os médicos vão para onde entenderem, a administração contrata novos médicos para substituir os que saem, ou adopta modelos de gestão mais eficientes em que são precisos menos médicos e a vida continua.

O problema é que não há muitos médicos para contratar (é extraordinária a bovinidade da comunicação social na divulgação dos números de lançamento de concursos para contratação que o governo vai fazendo, apesar de saber que o número de candidatos fica muito aquém das vagas disponíveis e que o número final de contratações fica ainda aquém dos candidatos aprovados) e os modelos de gestão do sistema de saúde parecem ter problemas de eficiência.

O senhor que agora parece que manda no SNS (não, não é o ministro, o outro) diz que vai fazer a maior reforma do SNS em 44 anos, mas não só já sou velho suficiente para ter visto centenas de reformas históricas, na opinião dos seus autores, que não passaram de fogo de vista ou, pior, foram mesmo executadas e deram asneira, como tenho dúvidas de que a reforma que vai ser feita, que consiste em baralhar e dar de novo, seja mais relevante que a que permitiu fazer PPP na saúde, cujos resultados toda a gente conhece.

E as minhas dúvidas prendem-se exatamente com o que disse acima: o SNS tem um problema no uso eficiente dos recursos (como praticamente toda a administração pública em Portugal) - o que talvez se resolva com reformas como considerar que as PPP, ou outro mecanismo de integração da gestão privada e de estímulo da melhoria da gestão pública que se queira inventar, são uma solução que deu bons resultados e deveria ser aprofundada - mas tem também um problema base de contratação de pessoas.

O senhor do SNS diz que esse é um problema transversal em todo o mundo, o que é verdade (parece que nos EUA o problema é menor porque pagam muito melhor aos profissionais de saúde que o resto do mundo), mas não é toda a verdade: é facílimo encontrar enfermeiros portugueses no Reino Unido, mas não é fácil encontrar enfermeiros ingleses em Portugal.

O que me interessa aqui é que, ao nível de cada pessoa, se as pessoas não se sentem bem (ou porque são mal pagas, ou porque as condições de trabalho são frustrantes, ou porque não estão para aturar chefias a quem não reconhecem autoridade para ocupar o lugar, ou porque não estão para aturar os efeitos de decisões de gestão que não compreendem, seja pelo que for), mudam-se, se tiverem alternativa.

O efeito de progressiva degradação das condições de trabalho e de vida, incluindo de representação política e qualidade institucional, que se tem vindo a verificar em Portugal, e que tem como principal problema fechar horizontes de futuro às pessoas (as pessoas mudam mais pelo que veem do seu futuro que pelas condições concretas em que vivem hoje), tem dois efeitos negativos: muitos dos que podem, vão para outro lado, muitos dos que ficam, desistem de tentar contribuir para o futuro coletivo.

Incompetência é aprovar um programa Mais Habitação, porque se pode, não ponderando devidamente os efeitos que o processo de imposição do programa tem nas decisões individuais das pessoas comuns. 

Cinismo político é voluntariamente escolher ministros incompetentes para que não se apercebam de que não são ministros de coisa nenhuma, mas apenas a guarda pretoriana de um indivíduo sem escrúpulos.

Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas, 6-9-2023

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Esta é de topete 

Um comentário:

  1. Com o rabo de fora
    Quando em vez de analisarem a crise profunda na habitação, a crise profunda na saúde, a crise profunda na economia, a crise profunda nos transportes, a crise profunda nos serviços públicos... quando em vez de abordarem esses temas principais os comentadores, as notícias e as vozes-off dos telejornais preferirem falar de uma «guerra política entre PR e PM», estão a dizer-nos que quem fala, comenta ou «noticia» é apenas um servente do governo.

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