O mérito será desvalorizado. As quotas identitárias, glorificadas. O objetivo já não será formar cidadãos conscientes, mas indivíduos obedientes a uma ordem pós-identitária e global
João Maurício Brás
Podemos antever algumas
características de uma ditadura liberal-progressista, uma expressão que, à
primeira vista, parece contraditória. Esta não se imporá pela força bruta, mas
pelo consenso fabricado. Não marcha com botas nem ergue bandeiras vermelhas,
mas apresenta-se em palcos internacionais, com discursos sobre dignidade,
diversidade e direitos humanos. Não se anunciará como tirania, pelo contrário,
apresentará a sua ordem como o culminar da civilização, como a mais justa e
tolerante das sociedades possíveis. Assumirá a forma de uma civilização
evoluída, onde todos serão livres desde que aceitem os valores justos,
progressistas e inclusivos. A sua violência será subtil, mas omnipresente. A
sua repressão, invisível, mas eficaz. Será uma ditadura sem rosto, mas com
milhares de vozes, repetindo em uníssono o mesmo refrão moral. E quanto mais se
proclamar democrática, mais eficaz será na supressão silenciosa da dissidência.
A Moral Única e o Fim da
Dissidência
Este regime fundar-se-á na
hegemonia de uma ortodoxia moral progressista e numa ordem económica
globalista. A igualdade absoluta de reconhecimento, a primazia dos direitos
subjetivos e a libertação individual face a todas as estruturas herdadas como a
família, a religião ou a identidade nacional serão os pilares sagrados do novo
credo. A divergência será tratada como patologia. Qualquer discordância séria
será rotulada como ódio, intolerância ou desinformação.
A censura formal tornar-se-á
supérflua. Bastará o controlo cultural exercida nos media, nas universidades,
nas escolas e no entretenimento para tornar o dissenso socialmente suicida. Tal
como previu Alexis de Tocqueville, a liberdade será sufocada não por proibições
explícitas, mas por uma tirania suave que se infiltra na alma e a desarma.
O sistema judicial funcionará
como mecanismo de reeducação moral, substituindo o ideal de justiça neutra por
um novo código ético. Leis ambíguas sobre discurso de ódio, diversidade ou
retórica da aceitação serão usadas para perseguir a dissidência. A liberdade de
expressão continuará a existir no plano teórico, mas os seus limites serão
definidos pelos dogmas da nova moral oficial.
A Democracia Pós-Política
Politicamente, esta ordem assumirá a forma de uma democracia pós-política. As eleições continuarão, mas apenas entre variantes da mesma ortodoxia liberal-progressista. O pluralismo formal mascarará a ausência de alternativas reais. Os partidos que desafiarem o consenso serão marginalizados, os seus líderes desqualificados, as suas ideias ridicularizadas.
As decisões efetivas passarão
para as mãos de agências tecnocráticas, tribunais supranacionais, ONG e
conselhos de especialistas, entidades sem mandato democrático, mas com
autoridade normativa. A soberania será dissolvida em nome da racionalidade
global. Como advertiu Hannah Arendt, o totalitarismo moderno não precisa de
uniformes nem de partidos únicos. Basta-lhe a aliança entre a ideologia
redentora e a administração impessoal.
A Nova Economia Moral
No plano económico, o regime
consolidar-se-á por meio da aliança entre o Estado e as grandes corporações. As
multinacionais adotarão as agendas DEI (diversidade, equidade e inclusão), ESG
(ambiental, social e de governação) e os objetivos da Agenda 2030 não apenas
por convicção, mas como instrumentos de poder simbólico e controlo
reputacional. A adesão ideológica tornar-se-á critério de empregabilidade: os
trabalhadores serão avaliados menos pela competência do que pela obediência à
linguagem certa e às causas certas.
A liberdade será confundida
com o direito irrestrito de consumir e escolher, mesmo contra a natureza humana
e os vínculos comunitários. Tudo será mercantilizado: o corpo, os sentimentos,
a identidade, os valores, as relações, a fé.
A repressão já não dependerá
da polícia, mas da exclusão económica e digital. Contas serão encerradas,
conteúdos desmonetizados, perfis desindexados. Um sistema informal de crédito
social, sustentado por identidades digitais e algoritmos de reputação, permitirá
punir silenciosamente os desvios sem necessidade de tribunais. Como advertiu
Shoshana Zuboff, o capitalismo de vigilância não precisa de violência:
basta-lhe o controlo preditivo da conduta.
A Engenharia Social e a
Nova Educação
A educação será o principal
campo de doutrinação. Desde cedo, as crianças serão expostas a conteúdos
centrados na desconstrução das identidades tradicionais e na afirmação de
subjetividades fluidas. A escola deixará de ser um lugar de transmissão cultural
para se tornar uma fábrica de atitudes e afetos moldados segundo a cartilha
progressista.
O mérito será desvalorizado.
As quotas identitárias, glorificadas. O objetivo já não será formar cidadãos
conscientes, mas indivíduos obedientes a uma ordem pós-identitária e global. A
imposição de igualdade de resultados, e não apenas de oportunidades, far-se-á
por via legal, sem espaço para debate.
Tradições, símbolos e práticas
culturais considerados opressivos serão banidos ou reescritos. Estátuas,
feriados e nomes de ruas serão apagados se forem julgados antiprogressistas. A
cultura será instrumentalizada. A história, reeditada. A escola, capturada.
Como sugeria Foucault, o poder mais eficaz é o que molda o sujeito antes de
este ter consciência de si.
O Totalitarismo Simbólico e
a Inclusão Cínica
A inclusão tornar-se-á uma
retórica omnipresente, presente em campanhas publicitárias, manuais escolares e
diretrizes estatais, mas a redistribuição efetiva da riqueza será
sistematicamente evitada. A elite, cosmopolita e hiperconectada, continuará a
acumular capital e influência, enquanto ostenta a sua virtude em fóruns
internacionais e galas corporativas.
A diversidade servirá como
verniz moral sobre práticas económicas profundamente iníquas. Os trabalhadores,
sobretudo os oriundos de grupos minoritários, serão transformados em ativos
simbólicos. A diferença será convertida em capital simbólico. A precariedade
será dissimulada sob slogans de empoderamento. A desigualdade estrutural
ocultar-se-á sob a ilusão da representatividade. A precariedade laboral será
disfarçada por narrativas de empoderamento. A desigualdade estrutural será
encoberta pela representatividade superficial. E a censura, justificada por um
moralismo redentor.
A Contradição Estrutural e
o Autoritarismo Necessário
Este regime será
estruturalmente contraditório. Hiperliberal na economia, hiperprogressista nos
costumes. Privatizará todos os serviços públicos, eliminará impostos
progressivos e desregulamentará os mercados, em nome da eficiência. Mas, em
simultâneo, imporá quotas identitárias, campanhas obrigatórias de diversidade e
normas morais coercivas. Para manter esta ordem dual, a repressão tornar-se-á
indispensável.
A imposição dos valores
progressistas far-se-á de cima para baixo, sem mediação democrática. A
repressão política, cultural e económica será justificada como proteção contra
os novos inimigos da democracia: os populismos, as direitas radicais, os
nacionalismos, o conservadorismo. A censura será descrita como responsabilidade
social. A vigilância, como prevenção. A exclusão, como justiça.
A Tirania Desejada
Esta ditadura não se dirá
ditadura. Apresentar-se-á como guardiã do progresso ético e civilizacional.
Usará a linguagem da liberdade para suprimir liberdades, a retórica da
diversidade para impor uniformidade, o discurso da inclusão para justificar
exclusões.
Será, no seu âmago, uma ordem
tecnocrática de conformismo absoluto. Uma tirania suave, mas brutal. Consentida
por muitos. Temida por todos os que ousarem resistir. A distopia já não exige
campos nem grilhetas. É interior, persuasiva, legitimada por consensos
fabricados e desejos formatados. Uma fusão de Orwell e Huxley, onde o medo cede
lugar ao entretenimento e a censura se disfarça de empatia.
A nova brutalidade será
digital, reputacional, algorítmica. Uma elite económico-financeira e
intelectual legitimará o seu domínio em nome de uma suposta evolução moral da
humanidade, blindada ao sofrimento das massas e protegida por uma retórica de
superioridade ética.
O nome será outro. O método,
invisível. Mas a essência permanecerá: uma nova forma de tirania. Mais perigosa
por ser inaparente. Mais eficaz por ser desejada. Mais perversa por se dizer
libertadora.
Mas como estamos no
presente?
No século XXI não faltam os
exemplos da consolidação dessa ditadura possível, como o exemplo da hegemonia
cultural através de métodos não democráticos e agora confrontada por várias
irrupções que o sistema não está a controlar.
Estes métodos vigentes não
utilizam sempre a coerção direta, mas são bem impactantes os seus mecanismos
subtis de censura, exclusão e reeducação ideológica. Podemos falar, nesse
sentido, por exemplo, de um verdadeiro McCarthyismo progressista nos
Estados Unidos desde 2010, e da chamada cancel culture, presente em
grande parte do Ocidente desde 2015. Esta nova hegemonia não se limita à esfera
cultural. Também na política institucional se verifica a exigência de um
progressivo esvaziamento do pluralismo ideológico, substituído por um
tecnocratismo consensual. A convergência hiperliberal dos partidos europeus
desde a década de 1990, sob a bandeira da “Terceira Via”, e o crescente
predomínio tecnocrático na União Europeia a partir de 2008, contribuíram para
corroer as soberanias democráticas nacionais. Esta UE de democracia
pós-política eliminou, em grande parte, o dissenso legítimo e converte a
deliberação popular num ritual simbólico, esvaziado de eficácia substantiva.
Outra frente decisiva desta
transformação é o campo educativo. A escola, outrora espaço de transmissão do
conhecimento e formação do espírito crítico, foi progressivamente
instrumentalizada como veículo de doutrinação ideológica. Nos Estados Unidos, e
progressivamente no mundo ocidental, assistimos, desde 2010, à introdução de
conteúdos baseados na Teoria Crítica da Raça e na pseudociência do género, à
reescrita da história oficial e do que é o ser humano quase sempre sem
verdadeiro debate público. Esta ortodoxia dominante estende-se também às novas
formas de controlo social viabilizadas pela tecnologia digital. Desde 2015,
tornou-se prática comum a desmonetização e suspensão de conteúdos considerados
não conformes com a doutrina progressista dominante. O exemplo chinês do
crédito social mostra até onde pode chegar a vigilância ideológica, e o
Ocidente já ensaia os seus próprios mecanismos de segregação digital.
Por fim, esta nova ordem
ideológica não é apenas estatal nem meramente cultural: ela representa uma
aliança entre grandes corporações e instituições políticas. A adoção de
políticas ESG e DEI por empresas como estratégia de branding tornou-se
lugar-comum, apesar da manutenção de práticas laborais exploratórias e
estratégias de lucro agressivo. A virtude corporativa converteu-se num
instrumento de marketing moralizante. Gigantes empresariais proclamam apoio a
causas como o movimento Black Lives Matter, ao mesmo tempo que
enfrentam acusações recorrentes de exploração laboral em países do Sul Global.
Portugal não está imune a este presente obscuro.
Título e Texto: João Maurício
Brás, O Sol, 5-8-2025, 10h09
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