sábado, 15 de outubro de 2016

Do Estado social ao Estado eleitoral

Rui Ramos
O governo devolve salários ao funcionalismo, mas tira-lhe os meios para desempenhar o seu papel. O Estado social só interessa ao governo como uma bolsa de clientelas, e não como garante de serviços.

À espera do novo orçamento de Estado, por entre o aguaceiro de contra-informação governamental, o país ouviu anteontem o presidente da república pedir entendimentos. Entendimentos para muita coisa: saúde, educação, “reforma do Estado” e até a segurança social. Fica bem ao presidente da república tentar manter as aparências. Segundo os folhetos turísticos distribuídos em Bruxelas, Portugal tem hoje um governo e uma maioria estáveis, muito aplicados no cumprimento do Tratado Orçamental. Só alguns taxistas, que aliás não representam a “classe”, se portam menos bem. Mas devemos nós ficar-nos pelas aparências?

Reparem: não nego que a principal empresa de greves e de manifestações em Portugal, a CGTP, parece menos assídua. Reconheço que os partidos da maioria só fazem o ruído necessário para não se esquecerem deles. Admito que o governo deseja mesmo o défice negociado em Bruxelas. Sim, a estabilidade, por esse lado, não podia ser maior. Mas o noticiário tem um reverso: o crescimento económico cai, os impostos multiplicam-se, a dívida sobe, a dependência do BCE é maior. Graças ao dinheiro barato de Mario Draghi, ninguém sabe quanto tempo isto pode durar. Poder-se-á entretanto fazer alguma coisa?

Não se pode fazer nada. O abraço de António Costa ao PCP e ao BE teve este efeito: bloqueou o regime político, em mais de um sentido. Por um lado, porque da maioria formada por Costa, PCP e BE nunca poderá vir nada, a não ser dinheiro e regalias para as respectivas clientelas, já que em pouco mais os três parceiros se entendem (salvo na estranha ficção de tratar os Verdes como um partido verdadeiro). Por outro lado, a nova maioria rompeu a outra maioria que existiu em Portugal desde 1976: a maioria democrática e europeísta, a maioria do 25 de Novembro, a maioria das revisões constitucionais, e a maioria da adesão à CEE e à Moeda Única. Não era apenas a maioria que fundou o regime: era a maioria que lhe dava sentido, dinamismo, iniciativa, capacidade de se adaptar. Sem essa maioria, o regime está literalmente paralisado num concurso de demonização mútua. A antiga maioria democrática foi, por vezes, uma maioria de renovação e reforma; a nova maioria social-comunista será sempre uma maioria de esclerose e regressão.

Mas o governo trabalha no Orçamento, dir-me-ão. Sim, é verdade, o governo trabalha. Precisa de distribuir dinheiro, e depois, porque não pode alienar o financiamento do BCE, precisa de ir buscar dinheiro. Esta ginástica orçamental até poderá saciar os devidos clientes e dependentes, mas acabará por estrangular a economia, quer com a invencionice fiscal que temos admirado, quer com uma incerteza que fará cada vez mais investidores e trabalhadores hesitar ou desistir. Muita gente já o disse. Mas faltará dizer que não é só a economia que se degrada.

Tem sido comentado o efeito do corte de investimento e de “consumos intermédios” na qualidade dos serviços públicos. Creio, porém, que as suas consequências para o regime ainda não foram devidamente apreciadas. O governo devolve salários ao funcionalismo, mas tira-lhe, ao mesmo tempo, os meios para desempenhar o seu papel. Não poderia haver melhor sinal de que o Estado social só interessa ao governo e à maioria como uma bolsa de clientelas e de dependentes, e não como prestador ou garante de serviços à sociedade. Em Portugal, começamos a deixar de ter um Estado social para passar a ter um Estado fundamentalmente político-eleitoral: a prioridade é acomodar clientes; os benefícios para o resto da população são incidentais. Este vai ser o orçamento desse Estado. Pede-lhes o presidente que não pensem em eleições. Mas em que mais poderiam eles pensar?
Título e Texto: Rui Ramos, Observador, 14-10-2016

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