Helena Matos
Os mesmos católicos portugueses que tinham
assistido sem grande reação a partir de 1910 aos ataques à sua igreja
mobilizaram-se em torno de Fátima. Por quê? “É uma fé que nós cá temos!”
Passavam às centenas. Quando
interrogados pelos jornalistas sobre a razão daquele caminhar mais do que um
responde com um lapidar “É uma fé que nós cá temos!” Falo de Fátima obviamente.
Numa mistura de voluntarismo a que não
foi alheia alguma inconsciência meti ombros à tarefa de fazer um documentário e oitenta episódios de dois minutos sobre
Fátima, entretanto exibidos pela RTP.
O ponto de que parti era aquela gente
que a 13 de outubro de 1917 olhava meio pasmada para o sol. Uns tinham
barretes, outros chapéus, lenços, xailes… que analisados em detalhe davam conta
de que uns se vestiam à moda da Beira, outros do Minho… Havia gente descalça (e
tudo aquilo era lama!), gente que ainda conseguiu arranjar um macho ou um burro
em Chão de Maçãs. Outros vieram a pé.
À medida que avançava na pesquisa ia
encontrando outros rostos, os trajes regionais desapareciam e os automóveis
chegavam. O que era uma charneca urbanizava-se, o santuário configurava-se como
um território em constante mutação e sempre, mas sempre pessoas passando
continuamente, olhando os fotógrafos e os jornalistas com a autossuficiência
ditada por daquela fé que declaram ter. Lá, consigo.
Não se percebe Fátima sem atender a
esta expressão “que nós cá temos” para definir um conjunto de valores, no caso
religiosos, enquanto valores que se têm (ou tinham) independentemente do que
estava oficialmente instituído. Nós temos uma fé. Uma fé que em parte coincide,
mas não se esgota na grelha da liturgia católica. É um assunto nosso. Deles.
Não o explicam nem pedem explicações. Mas é esse “lá” dessa fé que definem como
sua que se constitui como o espaço de afirmação perante o Estado e a
sobranceria quando não a arrogância das elites.
Os católicos portugueses tinham
assistido sem grande reação aos ataques à sua igreja, à prisão de alguns padres
e às perseguições aos bispos. Às vezes reagiam, mas a revolta essa só chegava
quando o anticlericalismo do Estado os impedia de exercer essa fé que tinham
consigo. E assim o mesmo país que parecia aceitar com fatalismo o afastamento
dos bispos das respectivas dioceses enfrentava as autoridades para continuar a ter
as suas procissões, o toque dos seus sinos e não abdicava de todos os rituais
inerentes a um funeral católico. É desse país e dessa fé que “nós cá temos” que
nasce Fátima.
É também daí que advém o monumental
desencontro que teve lugar em Fátima entre o povo e as elites. Estas, sobretudo
nas suas vertentes mais revolucionárias, suspiraram todo o século XX por
movimentos de massas e tiveram um, gigantesco, poderoso e contínuo, ali à sua frente,
mas preferiram olhar para o outro lado. Aliás dizendo-se boa parte dessas elites
defensoras de um maior protagonismo para as mulheres, ignoraram olimpicamente a
presença das mulheres em Fátima – até Lúcia lhes pareceu desinteressante! – e
nem sequer se interessaram por esses grupos tantas vezes quase exclusivamente femininos
que durante vários dias, logo nos anos 30 e 40, deixavam as suas obrigações
quotidianas para ir a Fátima.
Quanto às elites católicas há muito
que esperavam por um facto que galvanizasse os católicos em torno da sua igreja,
mas Fátima estava longe de corresponder ao sinal por que o cardeal à época das
aparições dom António Mendes Belo esperava para fazer esse ressurgimento.
Entendessem Fátima como um sinal do
céu ou uma manobra urdida por alguns obscuros padres da região, era consensual
entre essas élites que Fátima nunca seria Lourdes.
Quando, a partir de 1921, dom José
Alves Correia da Silva, bispo de Leiria, desencadeia todo o conjunto de
iniciativas que levarão a Igreja não apenas a assumir Fátima, mas também e
sobretudo a organizá-la – o que entre outras coisas implicou a saída de Lúcia
de Ourém para um destino desconhecido da maior parte onde mudará de nome e será
proibida de falar de Fátima – de modo algum se encerrou o capítulo da tensão
entre a Igreja e a religiosidade popular.
A rejeição pelos peregrinos da
magnífica imagem de Nossa Senhora encomendada pelo santuário ao escultor
Teixeira Lopes (relegada para a Reitoria), preferindo-lhe a bem mais popular
imagem feita pelo santeiro Thedim (a que se encontra na capela das Aparições) é
um desses casos. Outro foi o projeto obviamente nunca concretizado de demolir a
Capela das Aparições, nascida do voluntarismo e do gosto da camponesa Maria
Carreira, substituindo-a por um monumento mais digno e com assinatura arquitetônica,
para o qual até foi encomendado um painel – encantador por sinal – ao ceramista
Jorge Barradas. Aliás é em torno da capela das Aparições que se regista uma das
maiores mobilizações espontâneas de que haverá memória em Portugal: a 6 de março
de 1922 a capela é objeto de um atentado terrorista. Logo a 13 de março, uma
escassa semana depois do atentado, confluem milhares de peregrinos para Fátima.
A 13 de Maio teve lugar uma gigantesca peregrinação. Nunca nada de semelhante
se vira por causa da profanação das igrejas.
Dos sentimentos contraditórios gerados
pelos excessos de que o povo que se dizia católico era capaz em Fátima versus a
indiferença que manifestava face à igreja dão bem conta as palavras que Lúcia
regista nas suas memórias como tendo sido proferidas pelo padre Manuel Marques
Ferreira, pároco em Fátima à data das aparições: “Para que vai essa quantidade
de gente prostrar-se em oração em um descampado, enquanto que o Deus vivo, o
Deus dos nossos altares permanece solitário, abandonado no tabernáculo? Para
quê esse dinheiro que deixam ficar, sem fim algum, debaixo dessa carrasqueira
enquanto que a igreja em obras não há maneira de se acabar, por falta de
meios?”
Perceber Fátima implica entrar num
universo de contradições em que o mesmo povo que deixava e deixa vazias as igrejas
daquele que diz ser o seu Deus percorre quilómetros para ir ajoelhar num local
onde nem sequer todos os que ali acorrem e rezam acreditam que tiveram lugar as
aparições.
Quer na sua improbabilidade quer na
coexistência entre esse algo que nós cá temos com o que dizem que devemos ter e
ser, Fátima é uma história portuguesa que não por acaso tem na procissão do
adeus o seu momento mais identitário. Ao contrário do que acontece com a
procissão das velas, a procissão do adeus não foi importada doutros santuários
marianos. Terá sido em 1925 que se assinalou pela primeira vez a realização da
procissão do adeus: nesse ano, 1925, a missa da peregrinação de 13 de maio
começara a celebrar-se no pavilhão dos doentes, o que obrigou a que a imagem
viesse da capelinha das aparições até esse pavilhão e que depois de terminada a
missa a imagem regressasse à capela. Foi então que se viram a ser agitados os
lenços brancos – esses lenços que os portugueses voltaram a tirar do bolso
quando à beira do Tejo viam os barcos partir com soldados para a guerra –
enquanto a imagem fazia esse percurso. Rapidamente se passa a falar de
procissão do adeus. E do adeus ficou até hoje, crescendo na sua emotividade e
nas suas possíveis interpretações: marca de religiosidade popular e símbolo de
um país que nesse comovido adeus celebra também esse modo de ser e de
sobreviver que se chama saudade.
Discutir a fé faz tanto sentido quando
discutir a Arte: faz parte das sociedades humanas. E a “fé que nós cá temos!”,
essa fé que criou Fátima, faz parte da sociedade portuguesa.
Ps. Depois de anos a anunciar
apocalipses sociais, subúrbios em chamas, multidões inanimadas pela fome,
andava dom Januário Torgal Ferreira midiaticamente sumido até que Nossa Senhora
de Fátima o tirou de tal recato (ainda duvidam de milagres?). Isto para dizer “Escandaliza-me que as pessoas só rezem àquela imagem, que se despeçam dela a chorar, na Procissão do Adeus. Eu nunca me despeço de Nossa Senhora, porque ela está sempre comigo. Aquilo para mim não é nada, é um pedaço de barro!”
Valha-lhe Deus, senhor dom Januário, e
Nossa Senhora que, segundo diz, sempre o acompanha o que não é certamente o menor
dos trabalhos da Mãe de Cristo! A imagem é de madeira, de madeira dom
Januário!!! E tem uma história que me abstenho de contar porque o texto já vai longo,
mas que o senhor dom Januário ainda vai a tempo de aprender. Acredite que lhe
fazia bem.
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
13-5-2017
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