Rui Ramos
O terrorismo islâmico pode transformar as
sociedades ocidentais, e é uma ilusão pensar que impedir isso é apenas uma
questão de boa vontade e abertura de espírito.
Perante cada barbaridade do
terrorismo islâmico na Europa e na América, percorremos sempre o mesmo caminho.
Primeiro, há a demora em
admitir que se trata de um atentado. A seguir, vem a reserva sobre a identidade
do autor. Depois, a incerteza sobre as suas cumplicidades e filiações. Nesta
relutância em reconhecer a realidade, não há apenas uma prudência preliminar:
há, muito claramente, o desejo desesperado de que não haja a lamentar senão um
acidente trágico, a selvajaria de um doido ou, quando muito, o ataque
desenquadrado de um “lobo solitário”.
Por fim, quando já não pode
haver dúvidas de que se trata de uma atrocidade planeada por um jihadista
imigrante ou filho de imigrantes muçulmanos do Médio Oriente ou do Norte de
África, com sócios entretanto presos, como aconteceu agora em Manchester,
jorram as admoestações do costume: o terrorismo quer-nos dividir, e nós temos
de nos manter unidos; o terrorismo contesta o nosso modo de vida, e nós temos
de prosseguir as nossas vidas o mais habitualmente possível. Como se tudo
dependesse apenas de nós e dos sentimentos que ostentamos nas redes sociais.
Há muitas sociedades, no Médio
Oriente ou em África, para quem o horror jihadista é parte do quotidiano. As
democracias ocidentais, porém, não estão preparadas para aceitar as bombas como
uma nova normalidade. Porque a nossa liberdade requer segurança, mas também
porque não é compatível com todas as formas de segurança. É significativo, a
esse respeito, que em Manchester, tal como em quase todos os últimos atentados,
o perpetrador fosse alguém conhecido da polícia pelas suas ideias ou conexões
islamistas. Mas as nossas autoridades não privam ninguém de direitos apenas
pelas suas origens ou convicções, antes de provada a conspiração para cometer
um crime. Até quando, sob a pressão do terrorismo, será assim?
A tese de que os terroristas
nunca vencerão tem o conforto da nossa supremacia tecnológica. Mas não é pelo
nivelamento tecnológico que os jihadistas nos ameaçam. É pela aglomeração do
nosso mundo com o mundo deles. A Europa, no tempo dos impérios, quando
administrava a África e policiava a Ásia, estava separada por longas viagens
desses mundos exóticos. Em 1881, houve uma grande revolta jihadista no Sudão,
liderada pelo Mahdi. O público ocidental seguiu o acontecimento pelos jornais e
alguns livros. Hoje, através das migrações e dos meios de transporte e de
comunicação, essa distância desapareceu: o Sudão do Mahdi fica atualmente nos
subúrbios de Manchester, de Paris ou de Berlim, porque com as pessoas vêm as
suas culturas.
Os regimes ocidentais
promoveram a circulação, com muitos benefícios. Agora, não têm solução para os
seus efeitos secundários. Uns pensam em acabar de ocidentalizar a África e o
Médio Oriente, através da intervenção militar; outros esperam integrar os que
vão chegando; e outros ainda, exigem o encerramento das fronteiras. Mas, como
se tem visto, faltam os consensos e os recursos não só para as intervenções e
as assimilações, como também para os distanciamentos.
Por isso, faz-se o que se pode:
manter a polícia atenta na Europa e na América, para não deixar a jihad
desenvolver “células”, e ajudar aliados no Médio Oriente e na África, de modo a
não consentir “santuários”. Mas que acontecerá se um dia os ocidentais se
sentirem verdadeiramente fracos e inseguros, como é objetivo dos terroristas?
Conseguiremos não nos tornar noutra coisa, por exemplo, em comunidades
exclusivistas determinadas a retaliar brutalmente? Talvez pouca gente deseje
isso, mas é uma ilusão pensar que é apenas uma questão de boa vontade e
abertura de espírito.
No fundo, a única coisa que
falta dizer sobre o terrorismo é evidente: pode mesmo mudar a maneira como
vivemos, e também a maneira como pensamos. Por enquanto, no Reino Unido já há
tropa na rua, como em França, e até Morrissey começar a estar farto do “politicamente correto”.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
24-5-2017
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-