Aparecido Raimundo de Souza
1
Um franciscano de uma
cidadezinha do interior de São Paulo, antes de ser ordenado, ganhou a vida como
ventriloquista, ou seja, ele sabia com perfeição manipular a voz sem movimentar
os lábios, e o fazia de tal maneira, tão divina e acurada, que o som parecia
estar saindo realmente de outro lugar.
2
Mesmo após ter deixado a vida
comum, continuou cultivando essa prática. Assim, naquela manhã de domingo, após
a celebração da missa das sete, resolveu se divertir um pouco. Optou por
impressionar os pirralhos de rua que viviam numa casa de abrigo contígua à
diocese.
3
Com essa ideia na cabeça,
pediu à coordenadora que liberasse os moleques e os colocasse sentados nas
escadarias da matriz. Minutos depois, ao ver todos acomodados e atentos, disse,
em voz alta e em bom tom:
- Meus queridos e amados, bom
dia. Hoje quero trazer a vocês uma brincadeira diferente. Quem aqui sabe
conversar com os animais?
4
Ninguém ousou responder.
- Pois muito bem. Vocês sabiam
que eu me comunico com os bichos?
Evidentemente os pequenos
continuaram a duvidar e caíram numa estrondosa gargalhada:
- Eu não acredito – disse
Luizinho com ar de deboche.
- Nem eu - berrou Paulinho
erguendo o dedo.
- Essa história não existe –
observou muito sério o Ricardinho. – Isso é balela. Prosa besta pra inglês
ver...
O pároco, todavia, não se fez
de rogado. Insistiu veemente:
- E se eu provar a vocês que
falo com os animais como agora me dirijo a vocês?
Um dos guris se levantou, lá
atrás.
- Limpo o altar e tiro a
poeira dos santos por três dias seguidos.
Outro criou coragem e seguiu
os passos do amiguinho:
- Eu cuido de lavar a frente
do santuário por uma semana.
Um terceiro, mais afoito,
vociferou confiante:
- Dou um trato caprichado no
seu carro e na Kombi da creche por quinze dias.
- Pois muito bem, seus
pestinhas. Logo comprovarei a veracidade do que acabo de afirmar.
5
A galera esperou um bom tempo
para que o sacerdote pusesse em prática a sua maneira ímpar de se divertir à
custa dos pobres e indefesos inocentes. Quinze minutos. Já quase a ponto de
desistir da empreitada, eis que para deleite de todos, principalmente do
abençoado, uma vaca vinda não se sabe de onde, cruzou a praça e estancou os
passos perto do coreto. Luizinho tornou a se colocar em pé e a descrer do representante
dos dons sagrados. Falou:
- E aí, seu prelado. Ali temos
uma vaca desgarrada de alguma manada. Leva um ti-ti-ti com ela...
O eclesiástico se empertigou
antes de pôr em prática o velho e surrado truque no qual dominava com suntuosa
maestria. Elevou o mais que pôde, a voz:
- Bom dia, dona Vaca! Seja
bem-vinda à nossa cidade e obrigado por participar de uma modesta apresentação
que desejo proporcionar a esses miúdos. Diga aqui para todos nós, com quem a
senhora fez sexo, a noite inteira?
O efeito da voz, projetada no
animal, caiu em cheio na estupefação dos incrédulos:
- Com o Touro, meu marido!
6
A turma evidentemente ficou de
queixo caído. Quase em seguida pintou
no pedaço uma égua. Aproveitando o embalo e a empolgação da surpresa, o vigário
mandou bala. Tornou a gritar:
- Bom dia, dona Égua! Diga aí
para nós todos aqui reunidos, com quem a senhora fez sexo a noite toda?
A égua respondeu com a maior
cara de pau:
- Com o Cavalo, minha outra
parte pisante da ferradura!
Um Jesus Cristo em uníssono se
fez ouvir de um canto a outro. Os piás, até então boquirrotados e eufóricos,
passaram a condição de estarrecidos e maravilhados, as bundinhas coladas no
chão de cimento, o coração a mil por hora. Não acreditavam que tal coisa
pudesse ser verdade e estar acontecendo, ao vivo e a cores. Mas era real. Antes mesmo de tomarem fôlego, uma galinha
entrou no circuito. Vinha ciscando, ávida, à procura de comida:
- Bom dia, dona Galinha. Por
favor, me mata uma curiosidade: diga para esses rapazes alegres e saltitantes,
com quem a senhora fez sexo a noite toda?
- Com o Galo, ora essa. O
grande e único amor da minha vida.
7
A cachorra do português da
padaria igualmente saiu correndo do estabelecimento e, vendo o prior, estancou,
diante dele, abanando o rabo e latindo:
- Dona Cachorra, que prazer!
Aproveita que está aqui e diz para nós, com quem a senhora fez sexo a noite
toda?
- Oxe, seu igrejeiro! Com o
cachorro do meu companheiro. Cachorro no bom sentido.
- Entendi dona Cachorra.
Entendi perfeitamente a sua colocação.
Na vez da pata a mesma cena se
repetiu:
- Com o pato, meu eterno
“morzinho”.
- E ele pagou o pato como
manda o figurino?
- Não só pagou como afogou o
ganso!...
8
Na medida em que a bicharada
passava, o traquina mandava a indagação. Os irracionais, na sequência surgida,
respondiam com a maior tranquilidade. Os adolescentes continuavam assombrados
e, sobretudo, apatetados e enfeitiçados. Aquilo, para eles, significava uma
aberração absurda e disparatada, coisa de outro mundo.
- Nossa mãe santíssima! O
batinado é mágico!
- Não, é mais que mágico: é
santo!
- Ele falou de verdade... viu
como a Pomba, a Calopsita e o Sabiá olharam para ele?
- Meu Deus!
De repente, surgiu, na área,
uma cabrita. Nessa hora, ao avistar o
ruminante, um dos garotos, o Edinho, se levantou, desesperado. Praticamente
voou em direção ao confessor e se ajoelhou aos seus pés, ao tempo em que lhe
beijava as mãos e desatava a chorar copiosamente. Intrigado e perplexo, o
beatificado se quedou atônito e pasmado. Sem entender bulhufas, pesquisou do
infante o motivo do choro convulso e a causa maior daquela intrigante e
inesperada aflição. “Que se passa meu filho?”.
- Por tudo quanto é mais
sagrado. Não acredite em nada que essa cabrita que acabou de chegar disser de
mim. Eu descobri que ela é muito, muito mentirosa. Seu Bode, o amante, está pê
da vida com ela. O senhor me dá a sua palavra de que não vai acreditar em
nadinha, nadinha, do que ela disser?
A comoção caiu pesada por
sobre os costados do homem de Deus de forma escandalosamente
estarrecedora.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista. De São Paulo, Capital.
21-5-2017
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