domingo, 21 de maio de 2017

[Aparecido rasga o verbo] O padre do hábito diferente

Aparecido Raimundo de Souza

1
Um franciscano de uma cidadezinha do interior de São Paulo, antes de ser ordenado, ganhou a vida como ventriloquista, ou seja, ele sabia com perfeição manipular a voz sem movimentar os lábios, e o fazia de tal maneira, tão divina e acurada, que o som parecia estar saindo realmente de outro lugar.

2
Mesmo após ter deixado a vida comum, continuou cultivando essa prática. Assim, naquela manhã de domingo, após a celebração da missa das sete, resolveu se divertir um pouco. Optou por impressionar os pirralhos de rua que viviam numa casa de abrigo contígua à diocese.

3
Com essa ideia na cabeça, pediu à coordenadora que liberasse os moleques e os colocasse sentados nas escadarias da matriz. Minutos depois, ao ver todos acomodados e atentos, disse, em voz alta e em bom tom:

- Meus queridos e amados, bom dia. Hoje quero trazer a vocês uma brincadeira diferente. Quem aqui sabe conversar com os animais?

4
Ninguém ousou responder.
- Pois muito bem. Vocês sabiam que eu me comunico com os bichos?
Evidentemente os pequenos continuaram a duvidar e caíram numa estrondosa gargalhada:
- Eu não acredito – disse Luizinho com ar de deboche.
- Nem eu - berrou Paulinho erguendo o dedo.
- Essa história não existe – observou muito sério o Ricardinho. – Isso é balela. Prosa besta pra inglês ver...

O pároco, todavia, não se fez de rogado. Insistiu veemente:
- E se eu provar a vocês que falo com os animais como agora me dirijo a vocês?

Um dos guris se levantou, lá atrás.
- Limpo o altar e tiro a poeira dos santos por três dias seguidos.

Outro criou coragem e seguiu os passos do amiguinho:
- Eu cuido de lavar a frente do santuário por uma semana.

Um terceiro, mais afoito, vociferou confiante:
- Dou um trato caprichado no seu carro e na Kombi da creche por quinze dias.
- Pois muito bem, seus pestinhas. Logo comprovarei a veracidade do que acabo de afirmar.

5
A galera esperou um bom tempo para que o sacerdote pusesse em prática a sua maneira ímpar de se divertir à custa dos pobres e indefesos inocentes. Quinze minutos. Já quase a ponto de desistir da empreitada, eis que para deleite de todos, principalmente do abençoado, uma vaca vinda não se sabe de onde, cruzou a praça e estancou os passos perto do coreto. Luizinho tornou a se colocar em pé e a descrer do representante dos dons sagrados. Falou: 
- E aí, seu prelado. Ali temos uma vaca desgarrada de alguma manada. Leva um ti-ti-ti com ela...


O eclesiástico se empertigou antes de pôr em prática o velho e surrado truque no qual dominava com suntuosa maestria. Elevou o mais que pôde, a voz:
- Bom dia, dona Vaca! Seja bem-vinda à nossa cidade e obrigado por participar de uma modesta apresentação que desejo proporcionar a esses miúdos. Diga aqui para todos nós, com quem a senhora fez sexo, a noite inteira?
O efeito da voz, projetada no animal, caiu em cheio na estupefação dos incrédulos:
- Com o Touro, meu marido!

6
A turma evidentemente ficou de queixo caído.   Quase em seguida pintou no pedaço uma égua. Aproveitando o embalo e a empolgação da surpresa, o vigário mandou bala. Tornou a gritar:
- Bom dia, dona Égua! Diga aí para nós todos aqui reunidos, com quem a senhora fez sexo a noite toda?
A égua respondeu com a maior cara de pau:
- Com o Cavalo, minha outra parte pisante da ferradura!

Um Jesus Cristo em uníssono se fez ouvir de um canto a outro. Os piás, até então boquirrotados e eufóricos, passaram a condição de estarrecidos e maravilhados, as bundinhas coladas no chão de cimento, o coração a mil por hora. Não acreditavam que tal coisa pudesse ser verdade e estar acontecendo, ao vivo e a cores. Mas era real.  Antes mesmo de tomarem fôlego, uma galinha entrou no circuito. Vinha ciscando, ávida, à procura de comida:
- Bom dia, dona Galinha. Por favor, me mata uma curiosidade: diga para esses rapazes alegres e saltitantes, com quem a senhora fez sexo a noite toda?
- Com o Galo, ora essa. O grande e único amor da minha vida.

7
A cachorra do português da padaria igualmente saiu correndo do estabelecimento e, vendo o prior, estancou, diante dele, abanando o rabo e latindo: 
- Dona Cachorra, que prazer! Aproveita que está aqui e diz para nós, com quem a senhora fez sexo a noite toda? 
- Oxe, seu igrejeiro! Com o cachorro do meu companheiro. Cachorro no bom sentido.
- Entendi dona Cachorra. Entendi perfeitamente a sua colocação.

Na vez da pata a mesma cena se repetiu:
- Com o pato, meu eterno “morzinho”.
- E ele pagou o pato como manda o figurino?
- Não só pagou como afogou o ganso!...

8
Na medida em que a bicharada passava, o traquina mandava a indagação. Os irracionais, na sequência surgida, respondiam com a maior tranquilidade. Os adolescentes continuavam assombrados e, sobretudo, apatetados e enfeitiçados. Aquilo, para eles, significava uma aberração absurda e disparatada, coisa de outro mundo.
- Nossa mãe santíssima! O batinado é mágico!
- Não, é mais que mágico: é santo!
- Ele falou de verdade... viu como a Pomba, a Calopsita e o Sabiá olharam para ele?
- Meu Deus!

De repente, surgiu, na área, uma cabrita.  Nessa hora, ao avistar o ruminante, um dos garotos, o Edinho, se levantou, desesperado. Praticamente voou em direção ao confessor e se ajoelhou aos seus pés, ao tempo em que lhe beijava as mãos e desatava a chorar copiosamente. Intrigado e perplexo, o beatificado se quedou atônito e pasmado. Sem entender bulhufas, pesquisou do infante o motivo do choro convulso e a causa maior daquela intrigante e inesperada aflição. “Que se passa meu filho?”.
- Por tudo quanto é mais sagrado. Não acredite em nada que essa cabrita que acabou de chegar disser de mim. Eu descobri que ela é muito, muito mentirosa. Seu Bode, o amante, está pê da vida com ela. O senhor me dá a sua palavra de que não vai acreditar em nadinha, nadinha, do que ela disser?
A comoção caiu pesada por sobre os costados do homem de Deus de forma escandalosamente estarrecedora.  
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De São Paulo, Capital.  21-5-2017

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