quarta-feira, 17 de maio de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Desprotegido contra contágio infeccioso

Aparecido Raimundo de Souza

UM
O filho se vira para o pai, sentado confortavelmente na sala diante da televisão, e manda a pergunta, na bucha:
- Velho, dá pra descolar a charanga?

De mau humor, pelo fato de seu time estar perdendo, o cidadão responde, com raiva e sem desviar as vistas para o moço:
 - Nem pensar. Lembra a última vez em que caí na besteira?
- Esquece aquele dia, pai.
- Como esquecer? Além de você ter ido parar no hospital, ainda fiquei uma semana com o carro preso.

O filho pondera:
- Já passou, pai. Pedi desculpas mil vezes. E paguei todos os prejuízos causados.

O pai, todavia, rebate, intencionando pôr fim a conversa:
- Desculpar até desculpei, filho, você sabe disso. Não sou de guardar mágoas. Esquecer, porém, acredito que vá demorar um bocado. Tudo bem que você pagou os prejuízos, mas tenha sempre em mente que foi com meu dinheiro.

DOIS
O jovem não desiste:
- Mesada, pai. Paguei com a minha mesada.

O pai não deixa por menos.
- O que no fim das contas dá no mesmo. E a vergonha? Acaso se recorda do vexame que passei perante meus colegas da repartição? Aguentei uma enxurrada de gracinhas e constrangimentos a semana inteira!

O filho tenta uma nova brecha:
- Pai, tô com uma “mina” nova no pedaço. Vai me deixar na mão?
- Acertou na mosca.
- Ela tem dezoito anos, é modelo, e dentro em breve estará numa revista masculina de circulação nacional exposta em todas as bancas, peladinha, sem nada, como veio ao mundo...

O pai segue intransigente:
- Desista. Não!

O filho, porém, não dá ares de fraqueza:
 - Só hoje, pai. Prometi levá-la a um restaurante.

Sem remover os olhos do aparelho, o pai retempera:
- E depois?
- Ainda não pensei.
- Esse é o problema, filho...
- O máximo que poderá rolar é um motel de beira de estrada. Afinal, tal pai, tal filho!

O pai se sente atingido em sua moral.  Momentaneamente se coloca em pé, numa atitude de embravecimento incontido:
- Uma ova. No meu tempo não tinha essas mordomias. Ai de mim se pedisse o automóvel a meu pai, seu avô.

O rapaz tenta uma nova tática. Quem sabe não surta o efeito desejado:
- Pera lá, pai. E se o senhor fosse junto?

A criatura, indignada, segue irritadiça:
- Segurando vela? Acaso me acha, aos sessenta e quatro anos, com cara de castiçal?
- O senhor não coopera. Leva tudo a ferro e a fogo.
- Por essa razão cheguei ao patamar em que estou. Na sua idade, dava um duro danado para ajudar em casa.

TRÊS
Magoado, o filho arrisca convencer o pai por não ser um desocupado:
- Não sou vagabundo. Tenho meu trabalho.

O pai refuta, se contrapondo:
- E o que faz com o dinheiro?

O rapaz se mantém na sua linha de pensamento:
- Pago a faculdade, invisto em roupas e sapatos. O senhor nunca precisou comprar um caderno para mim, sequer uma borracha.

- Por certo, nessa parte tem toda razão. Por que não junta todo mês uma quantia e dá entrada num carrinho?

Diante disso, o filho segue por um caminho diferente:
- O senhor sabe que ganho pouco. Ainda que essa mixaria fosse juntada à mesada que o senhor me direciona, todo mês, ainda assim, não daria nem para o cheiro. Leve em conta que não tive a mesma sorte que bateu à sua porta. De mais a mais, os tempos mudaram. São outros. Quando o senhor tinha a minha idade...  tudo era mais fácil.

QUATRO
Nessa altura do campeonato, o time do cidadão sofre um gol. O pai, se aproveitando desse gancho, grita, espinafrando:
- Fácil? Fácil? Você diz fácil!  No meu tempo, filho, no meu tempo não existia uma série de coisas como televisão a cores, computador com tecnologia de ponta, Internet, fax, telefone sem fio, enfim...

O filho não perde a pose. Obstinado, tenta atingir o coração do pai:
- Cá entre nós. O senhor pode não querer dar o braço a torcer, mas, no fundo, concorda comigo e sabe que tenho razão. Vamos, pai, na moral, libera a carreta!
- Terminantemente não.
- O senhor não vai sair de casa esta noite.
- Eu sei...

- Tem dois belos possantes parados na garagem. Dispensa um deles!
- Dois possantes -, como você acabou de frisar -, comprados com o suor do meu rosto. Meu jovem mancebo faça como eu: vá à luta.

O filho anda as voltas de querer mandar o pai à merda. Entretanto, raciocina, aquilata a situação. Entrementes, se faz de magoado: 
- Pai, deixa de jogar as coisas na minha cara. Estou lhe convidando. Vamos comigo. Mamãe está viajando, só regressa na sexta-feira.
- Não, não, não!
- Depois desse seu futebol não tem nenhum programa de televisão que o senhor se amarre.

- Pensando nisso, aproveitei, passei na locadora e peguei dois filmes.
- Excelentes motivos para jogar o pé de borracha na minha mão. Vai, manda a chave. Dou a minha palavra que estarei de volta em quatro ou cinco horas.

O camarada é difícil de ser dobrado. Aliás, não quer ser dobrado. Em vista disso, não sede, não dá chance. Obtempera:
- Você não sabe o que significa quando uma pessoa diz não? Filho, não é não. Ene... a... o... til.

CINCO
Diante de tantas recusas e negativas, o rapaz faz menção de se retirar. Cabisbaixo, a tez deprimida se afasta em direção ao seu quarto. Antes de sumir, de vez, no corredor enorme, relanceia num derradeiro de súplica para o velho genitor. Tentativa definitiva de demovê-lo do rosto zangado, amuado e, fazer com que volte à razão, e reveja seus conceitos de só dizer não, não, não, como se fosse um mantra tocando numa rádio vitrola do tempo do ronca, um disco de vinil arranhado. Se a sua teoria der certo, o pai ficará sem saída, em cheque mate. 
- É uma pena! – observa, pressuroso.
- O quê?!
- Terei que ligar e desmarcar com a gatinha que jantaria comigo! Não quer reconsiderar a ideia? 
O pai se mantém irredutível:
- Desista.
- Ela me disse que traria uma coleguinha da Agência. Pensávamos em jantar os três e... ou se o senhor...

FINAL
Inesperadamente o homem salta do sofá, como se tivesse molas no traseiro. Desliga a televisão e encara o filho bem dentro dos olhos:
- Por que não disse de uma vez?
O filho vendo que ganhara a batalha se faz de bobo:
- O quê, pai?
- Que a sua namoradinha traria, a tiracolo uma amiguinha?
- Eu...
- Fico pronto em cinco minutos. Tome o molho de chaves. Desça até a garagem e escolha: a BMW ou a Mercedes?
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, 16-5-2017

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