Rafael Marques de Morais
As lágrimas correm pelo rosto
de Eugénia Pedro Dinis. Ajeita-se na cadeira, procura manter a compostura. O
marido, carinhoso, tenta acalmá-la para que ela consiga falar, partilhar o seu
testemunho sobre a forma brutal como os seus quatro filhos foram espancados e
detidos, em sua casa e na sua presença, por sete agentes do Serviço de
Investigação Criminal (SIC), sem mandado de captura ou de busca. Narra como os
agentes “saquearam” também a sua casa, tendo levado uma botija de gás e o
redutor que estava ligado ao fogão, um televisor, 150 mil kwanzas, um
estabilizador de energia e uma ventoinha. O calvário da família dura há um mês
e é de interesse público.
Depois da detenção dos quatro
irmãos, a 17 de abril, interviemos junto das autoridades policiais no sentido
de garantir o cumprimento da lei e o respeito pelos direitos humanos. Passados
alguns dias, Nunes Sebastião Tenda-la “Angolano”, de 31 anos, Domingos Tandala
“Mano Mingo”, de 29 anos, e Valter Sebastião Tandala “Lúcio”, de 27 anos, foram
declarados inocentes e libertados. Contudo, o mais novo dos irmãos, Estevão
Dinis Tandala “VT”, de 23 anos, permaneceu detido na 44.ª Esquadra, conhecida
como a Esquadra dos Contentores, no bairro da Estalagem, município de Viana.
Dias depois, foi transferido para a Penitenciária de Viana, onde atualmente se
encontra, acusado de furto de um televisor, apenas porque o confesso ladrão do
televisor, sob tortura, indicou a casa dos Tandala.
A iniciativa de aconselhar as
autoridades a investigar devidamente o caso logo após o sucedido, em vez da
denúncia, resultou apenas na libertação parcial de três irmãos, um dos quais
foi espancado e detido novamente dias depois. Haverá ainda motivações políticas
subjacentes na operação, comunicadas à família, devido ao ativismo político de
dois dos irmãos. Maka Angola cumpre o dever de publicar o
caso.
O caso
Passava das 9h00 quando “nos
assustámos com a presença de sete DNICs [Direção Nacional de Investigação
Criminal, a predecessora do SIC] com coletes. Não mostraram nenhum papel
[mandado de captura ou de busca] nem perguntaram pelo nome de ninguém.
Trouxeram um menino algemado para indicar, mas este não conhecia ninguém”,
conta Eugénia Pedro Dinis, vendedora no mercado dos Congolenses.
“Os homens da DNIC [SIC]
perguntaram: ‘São esses?’ [O jovem algemado] disse ‘não são’. Então, dali o
dever era de se retirarem para irem procurar noutro sítio, mas além disso os
homens da investigação já tinham a fotografia do Nunes”, recapitula o pai,
Sebastião Domingos Tandala, veterano de guerra e atualmente guarda numa empresa
privada de segurança.
“Começaram logo a surrar o meu
filho mais velho, o Angolano, com coronhadas e paus, e um deles pegou numa
pedra que tinha no quintal e começou a bater-lhe com a pedra”, explica a mãe.
Eugénia Pedro Dinis diz que
tentou pedir explicações sobre o que se estava a passar. “Disseram-me para não
falar nada, senão me dariam um tiro e me arrastariam. Um deles disse à minha
neta Jéssica, de nove anos, que o pai dela, o Angolano, é gatuno. Pegou-a e
atirou-a ao chão e ela teve uma entorse no pescoço. As outras netas também
foram empurradas. ”
“Eles [agentes do SIC]
empurraram-me e disseram-me que levariam tudo o que havia de valor em casa. Foi
assim que roubaram o televisor, foram à cozinha e tiraram a botija de gás que
estava ligada ao fogão. Até o redutor levaram também. Carregaram a ventoinha e
o estabilizador que estava ligado à arca”, explica a mãe.
“Depois foram ao meu quarto e
roubaram os 150 mil kwanzas que eu e o meu marido tínhamos juntado para pagar
as rendas de casa. Eles não explicam nada, não perguntam nada. Só sabem
torturar e levar o que é alheio”, denuncia Eugénia Pedro Dinis.
O pai, Sebastião Domingos
Tandala, acrescenta que os agentes “levaram também quatro pares de chinelos,
daqueles que custam oito mil kwanzas cada, pertença dos meus filhos”.
Surgiram, então, os outros
três irmãos, protestando contra o espancamento de Nunes Sebastião Tandala
“Angolano”. Estêvão Tandala “VT” diz que foi empurrado por um agente e caiu
numa grade que tinha garrafas vazias, tendo partido algumas. Aí os “polícias
acusaram-nos de atacá-los com garrafas”, e começaram a distribuir pancadaria
pelos quatro irmãos.
“O Ngola Kabango é o que
estava a torturar mais”, diz a mãe. Faziam parte da missão, conforme
identificação dos jovens, os agentes conhecidos apenas por “Vandamme”, Kito,
Pessoa, Fortunato, Osvaldo e o chefe deles, Paulo.
“Os captores disseram aos meus
filhos que os levariam a todos porque o Domingos e o Valter ‘são muito armados
em revús e rebeldes’”, revela o pai dos rapazes.
De acordo com o pai, Mano
Mingo notabilizou-se como “revú” [revolucionário] nas manifestações
antigovernamentais que dezenas de jovens têm vindo a organizar desde 2011,
inspirados pela Primavera Árabe.
Sebastião Domingos Tandala
confessa que tanto Mano Mingo como Valter, conhecido como “Lúcio”, são hoje
militantes e ativistas assumidos da UNITA. “Essa é a grande bandidagem deles,
porque estão a mobilizar os outros”, sublinha.
“Os investigadores
perguntaram-me depois [já na esquadra] se os meus filhos são da UNITA e disseram-me
que os matariam. É uma pena que nenhum chefe me queira ouvir sobre isso. A
UNITA não é pessoa, é animal. É assim que eles veem a situação”, lamenta.
Depois do ataque inicial ao
“Angolano”, suspeito sobre o qual impendia a captura, na esquadra e depois da
nossa intervenção, ficámos a saber que os outros irmãos estavam detidos por
desacato à autoridade.
Entretanto, “Angolano” saiu
ilibado e o mais novo dos irmãos, Estêvão Dinis Tandala “VT”, acabou como
suspeito, sob o Processo nº 6271/17-VN, por furto de residência.
“O moço que mostrou a minha
casa, o Adão Domingos Miguel, foi detido por ofensas corporais, mas na esquadra
deram conta de que tinha furtado um televisor”, descreve Estêvão Tandala, a
partir da cadeia.
“Eu nunca andei com ele nem de
noite nem de dia. Nunca convivi com ele. Ele vive distante do meu bairro. A
polícia andava à sua procura e dos membros do seu grupo, ‘Os Bela’”, continua.
“Ele foi à minha casa por
ordem do SIC, depois de o terem torturado. Ele e o SIC sabem que o moço que
vendeu o plasma, o Dinis, é meu vizinho e fugiu do bairro. Eu soube disso na
esquadra. O SIC não me pediu para mostrar casa nenhuma e queriam que eu assumisse
a venda do televisor”, remata.
Até à sua detenção, o jovem
trabalhava no negócio improvisado do irmão Nunes Sebastião Tandala, de venda de
hambúrgueres, cachorros-quentes e bebidas (a chamada rulote), na vizinhança.
Na segunda-feira passada, 15
de maio, operativos do SIC detiveram novamente Nunes Sebastião Tandala
“Angolano”, no Quilómetro 30, em Viana, espancaram-no e instauraram-lhe o
processo nº 6606/17, por suspeita de venda de baterias de automóvel roubadas.
“Angolano” tem antecedentes criminais. Passou cinco anos na cadeia, até 2013,
por furto de motorizada.
Como se podem distinguir os
agentes da lei e da ordem dos bandidos nesta história? O que é que a botija de
gás, cuja falta causa tanto transtorno a Eugénia Dinis, dificultando-lhe a
tarefa de cozinhar para a sua família, tem a ver com as atividades dos seus
filhos? Como se combate a delinquência com atos de delinquência?
Tudo vai mal quando os agentes
do SIC agem como delinquentes. Como impõe a lei, face a esta denúncia pública
da prática de crimes, a Procuradoria-Geral da República é obrigada a iniciar
uma investigação. Para já, a botija de gás deve ser imediatamente devolvida à
Eugénia Dinis. Ficamos a aguardar resultados rápidos.
Título, Imagem e Texto: Rafael Marques de Morais, Maka Angola, 23-5-2017
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