Aparecido Raimundo de Souza
UM
O filho se vira para o pai,
sentado confortavelmente na sala diante da televisão, e manda a pergunta, na
bucha:
- Velho, dá pra descolar a
charanga?
De mau humor, pelo fato de seu
time estar perdendo, o cidadão responde, com raiva e sem desviar as vistas para
o moço:
- Nem pensar. Lembra a última vez em que caí
na besteira?
- Esquece aquele dia, pai.
- Como esquecer? Além de você
ter ido parar no hospital, ainda fiquei uma semana com o carro preso.
O filho pondera:
- Já passou, pai. Pedi
desculpas mil vezes. E paguei todos os prejuízos causados.
O pai, todavia, rebate,
intencionando pôr fim a conversa:
- Desculpar até desculpei,
filho, você sabe disso. Não sou de guardar mágoas. Esquecer, porém, acredito
que vá demorar um bocado. Tudo bem que você pagou os prejuízos, mas tenha
sempre em mente que foi com meu dinheiro.
DOIS
O jovem não desiste:
- Mesada, pai. Paguei com a
minha mesada.
O pai não deixa por menos.
- O que no fim das contas dá
no mesmo. E a vergonha? Acaso se recorda do vexame que passei perante meus
colegas da repartição? Aguentei uma enxurrada de gracinhas e constrangimentos a
semana inteira!
O filho tenta uma nova brecha:
- Pai, tô com uma “mina” nova
no pedaço. Vai me deixar na mão?
- Acertou na mosca.
- Ela tem dezoito anos, é
modelo, e dentro em breve estará numa revista masculina de circulação nacional
exposta em todas as bancas, peladinha, sem nada, como veio ao mundo...
O pai segue intransigente:
- Desista. Não!
O filho, porém, não dá ares de
fraqueza:
- Só hoje, pai. Prometi levá-la a um
restaurante.
Sem remover os olhos do
aparelho, o pai retempera:
- E depois?
- Ainda não pensei.
- Esse é o problema, filho...
- O máximo que poderá rolar é
um motel de beira de estrada. Afinal, tal pai, tal filho!
O pai se sente atingido em sua
moral. Momentaneamente se coloca em pé,
numa atitude de embravecimento incontido:
- Uma ova. No meu tempo não
tinha essas mordomias. Ai de mim se pedisse o automóvel a meu pai, seu avô.
O rapaz tenta uma nova tática.
Quem sabe não surta o efeito desejado:
- Pera lá, pai. E se o senhor
fosse junto?
A criatura, indignada, segue
irritadiça:
- Segurando vela? Acaso me
acha, aos sessenta e quatro anos, com cara de castiçal?
- O senhor não coopera. Leva
tudo a ferro e a fogo.
- Por essa razão cheguei ao
patamar em que estou. Na sua idade, dava um duro danado para ajudar em casa.
TRÊS
Magoado, o filho arrisca
convencer o pai por não ser um desocupado:
- Não sou vagabundo. Tenho meu
trabalho.
O pai refuta, se contrapondo:
- E o que faz com o dinheiro?
O rapaz se mantém na sua linha
de pensamento:
- Pago a faculdade, invisto em
roupas e sapatos. O senhor nunca precisou comprar um caderno para mim, sequer
uma borracha.
- Por certo, nessa parte tem
toda razão. Por que não junta todo mês uma quantia e dá entrada num carrinho?
Diante disso, o filho segue
por um caminho diferente:
- O senhor sabe que ganho
pouco. Ainda que essa mixaria fosse juntada à mesada que o senhor me direciona,
todo mês, ainda assim, não daria nem para o cheiro. Leve em conta que não tive
a mesma sorte que bateu à sua porta. De mais a mais, os tempos mudaram. São
outros. Quando o senhor tinha a minha idade...
tudo era mais fácil.
QUATRO
Nessa altura do campeonato, o
time do cidadão sofre um gol. O pai, se aproveitando desse gancho, grita,
espinafrando:
- Fácil? Fácil? Você diz
fácil! No meu tempo, filho, no meu tempo
não existia uma série de coisas como televisão a cores, computador com
tecnologia de ponta, Internet, fax, telefone sem fio, enfim...
O filho não perde a pose.
Obstinado, tenta atingir o coração do pai:
- Cá entre nós. O senhor pode
não querer dar o braço a torcer, mas, no fundo, concorda comigo e sabe que
tenho razão. Vamos, pai, na moral, libera a carreta!
- Terminantemente não.
- O senhor não vai sair de
casa esta noite.
- Eu sei...
- Tem dois belos possantes
parados na garagem. Dispensa um deles!
- Dois possantes -, como você
acabou de frisar -, comprados com o suor do meu rosto. Meu jovem mancebo faça
como eu: vá à luta.
O filho anda as voltas de
querer mandar o pai à merda. Entretanto, raciocina, aquilata a situação.
Entrementes, se faz de magoado:
- Pai, deixa de jogar as
coisas na minha cara. Estou lhe convidando. Vamos comigo. Mamãe está viajando,
só regressa na sexta-feira.
- Não, não, não!
- Depois desse seu futebol não
tem nenhum programa de televisão que o senhor se amarre.
- Pensando nisso, aproveitei,
passei na locadora e peguei dois filmes.
- Excelentes motivos para
jogar o pé de borracha na minha mão. Vai, manda a chave. Dou a minha palavra
que estarei de volta em quatro ou cinco horas.
O camarada é difícil de ser
dobrado. Aliás, não quer ser dobrado. Em vista disso, não sede, não dá chance.
Obtempera:
- Você não sabe o que
significa quando uma pessoa diz não? Filho, não é não. Ene... a... o... til.
CINCO
Diante de tantas recusas e
negativas, o rapaz faz menção de se retirar. Cabisbaixo, a tez deprimida se
afasta em direção ao seu quarto. Antes de sumir, de vez, no corredor enorme,
relanceia num derradeiro de súplica para o velho genitor. Tentativa definitiva
de demovê-lo do rosto zangado, amuado e, fazer com que volte à razão, e reveja
seus conceitos de só dizer não, não, não, como se fosse um mantra tocando numa
rádio vitrola do tempo do ronca, um disco de vinil arranhado. Se a sua teoria
der certo, o pai ficará sem saída, em cheque mate.
- É uma pena! – observa,
pressuroso.
- O quê?!
- Terei que ligar e desmarcar
com a gatinha que jantaria comigo! Não quer reconsiderar a ideia?
O pai se mantém irredutível:
- Desista.
- Ela me disse que traria uma
coleguinha da Agência. Pensávamos em jantar os três e... ou se o senhor...
FINAL
Inesperadamente o homem salta
do sofá, como se tivesse molas no traseiro. Desliga a televisão e encara o
filho bem dentro dos olhos:
- Por que não disse de uma
vez?
O filho vendo que ganhara a
batalha se faz de bobo:
- O quê, pai?
- Que a sua namoradinha
traria, a tiracolo uma amiguinha?
- Eu...
- Fico pronto em cinco
minutos. Tome o molho de chaves. Desça até a garagem e escolha: a BMW ou a
Mercedes?
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, jornalista. De Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo,
16-5-2017
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