Rui Verde
Ibrahim Karadol e Eljan Tushdievi
são cidadãos da Turquia e da Geórgia, respectivamente, condenados a 15 e 12
anos de prisão por crimes ligados ao terrorismo, pelo Tribunal Provincial de
Luanda, a 21 de março de 2017.
Se Karadol e Tushdievi fossem
terroristas, não hesitaríamos em aplaudir a mão pesada do Tribunal de Luanda.
Contudo, lendo os autos, e considerando o contexto, muitas dúvidas se levantam.
E colocam-se duas interrogações:
1 – Não terá o Tribunal
Provincial de Luanda sido negligente na aplicação dos princípios de direito e
processo penal no seu julgamento?
2 – Não serão Karadol e
Tushdievi vítimas, como tantos outros, da atuação global concertada dos regimes
autoritários, prática que tem vindo a desenvolver-se nos últimos anos?
Comecemos pelo primeiro
aspecto.
A decisão lavrada em 21 de março
de 2017, na 14.ª secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de
Luanda, condena os dois por vários crimes previstos e punidos pela Lei nº 34/11
de 6 de dezembro, respeitante ao Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento
do Terrorismo.
Os factos apresentados são
escassos: Tushdievi, sob as indicações de Karadol, terá comprado e vendido o
bilhete de avião que um terrorista kamikaze, de nome Abdisalam Abdullha Borleh,
usou para se introduzir num avião da companhia aérea Daalo Airlines, fazendo-se
explodir na Somália em 2 de fevereiro de 2016.
Todavia, não se percebe o nexo
de causalidade entre os dois presos em Angola e o terrorista que se fez
explodir. Como é que os bilhetes que estes compraram chegaram às mãos do
terrorista? Quem foram os intermediários? Era essa dúvida que o tribunal tinha
de resolver e não resolveu. Tem de haver uma imputação dos factos às pessoas e
uma sequência desses factos.
Parece claro que Karadol e
Tushdievi tinham um negócio de intermediação de compra e venda de bilhetes de
avião. De acordo com o processo judicial, esse negócio envolvia mais de
seiscentos bilhetes. Então, todos esses bilhetes se destinavam a terroristas?
Parece que não. A mulher de Karadol afiança que o negócio dos bilhetes era
feito com uma empresa turca conhecida denominada Mirza Tour, que, de acordo com
a mesma fonte, estaria ligada aos Serviços Secretos da Turquia.
Existe ainda a referência a um
grupo de associados da “organização terrorista”. Ora, os arguidos são taxativos
em afirmar que os supostos associados são apenas funcionários da empresa turca
Mirza Tour, mantendo com eles contato direto, e não secreto, para a emissão dos
bilhetes. Pergunta-se: o que aconteceu a esses supostos associados na Turquia?
Também se constata muita
trapalhice no apuramento dos factos. Por exemplo, considera-se provado que os
arguidos receberam a visita em Angola de Mehmet Öğütcüoğlu, proprietário de
empresa Mirza Tour, e por isso, estabeleceu-se que todos estavam efetivamente
relacionados. Os arguidos afirmam enfaticamente que não receberam qualquer
visita dessa pessoa. Haverá uma confusão entre Mehmet Öğütcüoğlu, dono da Mirza
Tour, fornecedora dos bilhetes, o qual nunca esteve em Angola no período
referido nos autos, e Mehmet Uğurluoğlu, que entrou em Angola a 11 de junho de
2016 e saiu a 17 de junho de 2016, pessoa desconhecida. O tribunal confundiu os
nomes, bastante semelhantes (UĞURLUOĞLU x ÖĞÜTCÜOĞLU). No entanto, coloca-se a
questão: se o dono da Mirza Tour consta como sendo parte do grupo de
terroristas, então porque é que não foi preso?
No mínimo, é confuso, e o
tribunal deveria ter apurado de forma mais adequada a factual idade, sobretudo
os nexos de causalidade e as imputações objetivas.
É sabido que a existência de
um crime pressupõe a imputação objetiva do resultado à conduta do agente. Para
determinação do nexo de imputação objetiva, existem vários critérios cuja correta
aplicação permitirá decidir com rigor se o resultado pode, ou não, ser objetivamente
imputado à conduta do agente. Um critério para determinar, isto é, o da teoria
da adequação. Segundo esta teoria, o resultado poderá ser objetivamente
imputado à conduta do agente quando, segundo um juízo de prognose póstuma, seja
previsível para uma pessoa média, colocada nas circunstâncias concretas em que
o agente atuou e com os conhecimentos concretos deste, que o resultado, como em
concreto se produziu, surja como consequência direta da conduta.
É precisamente esta relação e
este juízo que falta no acórdão: a ligação efetiva da intermediação de
bilhetes, da responsabilidade dos arguidos, à pertença a uma organização
terrorista e à explosão de um avião. Este nexo não está estabelecido de todo.
É preciso ainda determinar a
ligação dos dois homens ao Hizmet, também conhecido como movimento Gülen.
Trata-se de uma iniciativa civil mundial, enraizada na tradição espiritual e
humanística do Islão e inspirada pelas ideias e o ativismo de Fethullah Gülen.
Nas palavras deste, é um movimento não-ideológico, inspirado na fé, apolítico,
social, cultural e educacional, cujos princípios básicos decorrem dos valores
humanos universais, como o amor pela criação, o respeito pelas diferenças, a
empatia pelo ser humano, a compaixão e o altruísmo. O seu fundador, F. Güllen,
vive nos Estados Unidos. Se fosse terrorista, não viveria em liberdade nos
Estados Unidos.
O atentado no avião na Somália
foi reivindicado pela organização jihadista Al-Shabaab. O Hizmet e a Al-Shabaab
não têm qualquer ligação e representam, aliás, visões opostas do Islão.
As referências ao Hizmet
existentes no acórdão acabam por relevar a questão política em causa.
Colégio Esperança Internacional
E assim passamos ao segundo
aspecto.
Desde Kemal Ataturk, o
fundador da moderna Turquia nos anos 20/30 do século XX, que a Turquia se
assume como um estado laico. Essa situação começou apenas a mudar com a
ascensão ao poder do atual presidente da Turquia, em 2003. Recep Tayyip
Erdoğan, atual presidente da Turquia, assume-se como islâmico e tem tentado
reconduzir o estado turco para uma via mais religiosa.
Na fase de ascensão ao poder,
Erdogan contou com o apoio do Hizmet, que detinha grande influência na
sociedade civil, sobretudo através das suas escolas. Portanto, Erdogan e o
Hizmet eram aliados. Mais tarde, Erdogan descartou o Hizmet, e tornaram-se
inimigos.
A 15 de Julho de 2016, houve
uma tentativa de golpe de estado para afastar Erdogan. Essa tentativa falhou, e
levou o presidente turco a uma purga completa dos seus inimigos, especialmente
os pertencentes ao Hizmet, a quem acusa de estar por detrás da tentativa de
golpe de estado.
Ora, é este o contexto do
processo que agora nos ocupa: os dois condenados estavam ligados ao Hizmet e ao
seu Colégio Esperança Internacional, que operava em Luanda.
Erdogan, seguindo a prática
dos seus congéneres da Ásia Central, persegue os inimigos por todo o lado,
recorrendo a todos os meios legais e diplomáticos para levar avante essa
perseguição: embaixadores, Interpol, advogados e serviços financeiros.
Os professores Alexander
Cooley e John Heathershaw, das universidades de Columbia e Exeter, nos Estados
Unidos e Grã-Bretanha, respectivamente, afirmam que a extraterritorialidade é
uma das constantes da nova atuação das ditaduras. A perseguição aos inimigos
ignora as fronteiras. Dão como exemplo o caso do Uzbequistão, cujo regime
procura os seus opositores em países tão diferentes como a Suécia, a Rússia, o
Quirguistão, o Tajiquistão ou a Turquia. A repressão passou a ser
extraterritorial.
Muito possivelmente, é o que
se passa em Angola. O homem-forte de Angola “dá uma mãozinha” ao homem-forte da
Turquia.
Várias notícias surgidas e
publicadas indicaram a forte pressão que as autoridades turcas teriam feito
sobre Angola para encerrar o colégio que o Hizmet tinha em Luanda. E, de facto,
o Colégio Esperança Internacional foi encerrado. Todos estes movimentos se
passaram no primeiro trimestre de 2017, altura em que o processo que analisamos
ocorre. Por isso, é impossível não ligar as duas coisas.
Face ao exposto, é
imprescindível a atenta revisão judicial do caso de Karadol e Tushdievi.
Título, Imagem e Texto: Rui Verde, Maka Angola, 19-5-2017
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