sexta-feira, 25 de outubro de 2019

O PSD no seu melhor

É difícil identificar caminhos alternativos para revitalizar um grande partido político que pode, deve e tem de fazer muito mais para transformar um país afundado em décadas de esquerdismo.

Gabriel Mithá Ribeiro

Os maus resultados eleitorais de 2019 (europeias e legislativas) agravaram uma tendência continuada erosão social do PSD. Por isso, mais do que a disputa da liderança está em causa a dissolução progressiva da identidade coletiva do partido. O perfil muito distinto e combativo dos dois principais candidatos, Rui Rio e Luís Montenegro, é um ótimo ponto de partida, sem desconsiderar o perfil de Miguel Pinto Luz e de outros eventuais candidatos que venham a surgir.


Nessas circunstâncias, ainda que o debate seja interno, discutir o destino do PSD tem a grande vantagem de ser sinónimo de se discutir o destino de Portugal, país que, tal como o PSD, necessita de se reinventar para quebrar o estado de estagnação em que mergulhou desde inícios do século XXI.

Por muito fortes que sejam as tentações de fuga das diferentes candidaturas ao princípio da realidade, o essencial do que vai estar em jogo converge na busca de respostas internas à questão: o PSD é um partido de direita ou de esquerda?

Liberto-me desde já da palavra ambígua centro proposta por Rui Rio, ao contrário de Luís Montenegro que foi mais claro. Isso porque os termos direita e esquerda possuem tanto mais valor – moral, analítico, ideológico, político, social – quanto menos adjetivados (moderada, centro, radical, extrema), tal como quaisquer conceitos que servem o rigor do pensamento. A sua utilização adjetivada (como situar o partido ao centro) subverte o ponto de partida e o essencial das discussões, uma vez que a adjetivação é propícia ao desvio do foco do essencial para o acessório, a fala vazia que mata a dignificação e o valor social da ação política.

É importante que fique claro que as sociedades funcionam por representações sociais, e estas ou são orientadas por referentes simples e claros para o senso comum, ou não são socialmente funcionais. Recomendo a leitura do psicólogo social Serge Moscovici.

É também tempo de uma disputa interna com um profundo sentido histórico porque o PSD há anos que se arrasta num estado de esgotamento do primeiro ciclo histórico após a sua fundação. Entre 1974 e a atualidade existe, no mínimo, o intervalo duas gerações balizadas entre avós e netos.

Além desse dado ser significativo, nesse intervalo histórico o país e o mundo sofreram transformações profundas. Portugal redirecionou a sua orientação estratégica do império ultramarino para a Europa, para a Comunidade Económica Europeia (CEE) que entretanto se transformou em União Europeia (UE); implodiu a superpotência URSS e acabou a Guerra Fria; a governação de José Sócrates (2005-2011) deixou latente o esvaziamento da dignidade do exercício do poder na democracia; a China ganhou ascendência no sistema internacional; ocorreram transformações um pouco por todo o mundo, incluindo o fim do apartheid na África do Sul, as presidências contrastantes entre Barack Obama e Donald Trump, nos EUA, ou entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro, no Brasil; as populações do Ocidente envelheceram.

Apenas alguns dos sintomas da profunda reinvenção das realidades vividas que tornam absurdo ambicionar congelar uma identidade social no seu tempo originário de fundação, muito em especial quando se trata de um partido político fundado no auge soviético da Guerra Fria, 1974. Num país marcado por instituições frágeis, um grande partido político não pode fugir à obrigação de se reinventar para garantir que, apesar de frágeis, as instituições não quebrem e possam, também elas, reinventar-se.

Faz sentido recuperar Gabriel Almond e Sidney Verba. Em 1963 clarificaram o que se entende por cultura cívica. Resumiram-na à arte de saber reinventar um destino coletivo através do estabelecimento de compromissos equilibrados entre a tradição e a modernidade. Civismo significa que a última não rompe com a primeira, antes incorpora elementos daquela em novos contextos.

Foi a capacidade persistente de compromisso entre o passado (ala liberal do marcelismo) e o presente (pós 25 de Abril) que conferiu vitalidade política e social ao PSD à nascença com Francisco Sá Carneiro, depois revigorada, primeiro, por Aníbal Cavaco Silva e, mais tarde, por Pedro Passos Coelho. É tempo de procurar dar novo folego a essa tradição.

A diferença é que os dois ciclos de renovação referidos ocorreram em contextos em que era possível seguir lógicas latentes em matéria de grandes princípios do partido, ou não havia grandes pressões que apontassem noutro sentido. Hoje tudo mudou, dentro e fora do partido. O contexto torna inevitável uma discussão manifesta, intencional, às claras aos olhos dos militantes e, não menos, da opinião pública sobre a razão de ser do partido (moral, ideológica, política, social). Os dois principais candidatos apresentam lógica substantivamente distintas, o que será muito útil.

Cheguei a Portugal em 1980 e a minha ligação ao PSD, partido político no qual sempre votei desde que me naturalizei (1986) e do qual me tornei militante (2005), foi gerada por uma carga emotiva-afetiva nascida no dia da morte de Sá Carneiro, filiação que se foi consolidando ao longo do tempo. Assinalo que carga emotiva-afetiva é a regra de ouro da pertença a uma identidade social como um partido político.

Nas duas primeiras décadas em que abracei essa filiação identitária, para mim ser de direita ou ser de esquerda não era relevante ou, pelo menos, a questão era difusa. A identidade PSD chegava e sobrava. Essa era, à época, a magia agregadora do partido.

Como o lado subjetivo da condição humana não é estático no tempo, as décadas seguintes impuseram mudanças substantivas no meu olhar sobre a natureza da política. Na essência, elas são fruto da conjugação entre, por um lado, a crise financeira e econômica internacional iniciada em 2007-2008 e, por outro lado, a governação socialista patológica de José Sócrates (2005-2011). Nos dois casos as sequelas persistem. Daí em diante, a minha consciência passou a confrontar-me com a necessidade de uma definição clara em que tudo se foi resumindo ao dilema entre ser de direita ou ser de esquerda. A matéria tornou-se crucial para a minha dignidade pessoal, para a minha tranquilidade mental, moral e intelectual.

Um dilema dessa natureza mal resolvido gera riscos de quebra emotiva-afetiva se o sentido do percurso do sujeito individual (eu) se tornar dissonante do sentido do percurso do sujeito coletivo ao qual o indivíduo se filiou (PSD). Acontece o equivalente quando as relações familiares entram em ruptura. É o que está eu jogo na atual disputa interna na relação entre mim e o meu partido político.

E tudo indica que estou muito longe de ser um caso singular. É por isso que o debate interno no PSD não pode escapar à busca de respostas para o reencontro entre a alma do partido e a intimidade afetiva, emotiva e normativa dos seus militantes. É preciso não negar o óbvio: o PSD parte para esta disputa interna fortemente fragmentado. Não porque tenha de ser assim, antes por causa da falta de frontalidade em debater o assunto.

No que me toca, hoje não tenho dúvidas que sou e serei de direita para o resto dos meus dias. E cheguei a um ponto em que me é impossível não conceber a atual esquerda como algo de doentio, patológico.

Mas falta-me a outra metade. Só poderei desfazer as minhas dúvidas da relação afetiva com o meu partido quando tiver a certeza que a minha interpretação íntima e consciente do mundo que me rodeia, e do qual sou parte integrante, deixou de ter espaço no interior do PSD. Mais uma vez, estou seguro que não estou solitário, caso contrário o partido não vivia uma crise endêmica.

Todavia, tenho idade para saber que as instituições significativas para a identidade pessoal de cada um de nós nas suas diferentes dimensões – família, igreja, pátria, política, entre outras – não foram criadas para que as abandonemos, antes para que contribuamos para que elas sejam melhores a partir do seu interior. É por isso que é justíssimo que quem as abandone seja penalizado. Se não existirem custos (pesados) para quem abandona a sua instituição, e se quem fica não gera pressões ostracistas (sérias) sobre quem abandona, então a instituição não tem grande valor moral e cívico e, por isso, pode desaparecer. Albert Hirschman explicou isso em 1971.

A árvore dos notáveis e a floresta dos comuns
Um dos vícios que impede os indivíduos lidarem com a complexidade do real é o de confundirem a árvore com a floresta. Para compreender as sociedades, as suas instituições e identidades sociais (como os partidos políticos), não basta captar o discurso e o pensamento dos notáveis (líderes, intelectuais, gente da comunicação social), mas também e sobretudo o discurso e o pensamento de senso comum, dos indivíduos que partilham a mesma identidade mas que se limitam a vivê-la no dia-a-dia.

No panorama partidário português, o PSD integra os partidos cujas lideranças usam e abusam desse vício na gestão da identidade coletiva. A chegada de um novo líder corresponde, por norma, a reconhecer-lhe legitimidade para, por exemplo, situar o partido mais à direita, de forma latente ou manifesta. Segue-se outro líder que possui a mesma legitimidade, porém para situar o partido mais à esquerda. Depois virá outro líder que voltará a mudar. Por aí adiante e sem debates coletivos sólidos.

Tal atitude das lideranças mais não é do que uma escola de atropelos dos sentimentos mais íntimos que justificam a filiação voluntária dos indivíduos a uma dada identidade partidária, sejam militantes ou meros simpatizantes. Como nas famílias, nas igrejas ou nos clubes desportivos, entre outros, os grandes referentes afetivos e emotivos são cruciais e têm de ser estáveis no tempo para gerarem confiança e, com ela, instituições sólidas. No PSD hoje acontece justamente o oposto e de forma ostensiva.

Até porque o partido nasceu de uma falha original, a de possuir um rótulo identitário de esquerda para ambicionar consolidar o essencial da sua base sociológica à direita. Tal ambiguidade revelou-se fértil enquanto esse jogo foi latente. Porém, o século XXI está a agravar continuadamente as tensões ideológicas entre direita e esquerda e, com isso, a própria realidade transformou o que era fértil em estéril e fragmentador. O sociólogo Max Weber explicou os efeitos paradoxais da ação política no decurso do tempo. O debate interno no PSD deve ter isso em conta.

Vejam-se os riscos em que hoje incorrem os partidos marcados pela dissonância moral, identitária, cognitiva entre o que verbalizam e o que são. Por exemplo, um presidente de um grande partido afirmar que ele e os que representa não são de direita e, numa noite eleitoral menos feliz, a opinião pública é confrontada com uma leitura dos resultados em que predomina a tese da derrota da direita na qual pontificam esses líder e partido. Estes, por seu lado, não negam veementemente o pressuposto de que se a direita foi derrotada isso não é com eles. Deve ser difícil descobrir sintoma mais claro de uma relação esquizofrênica entre a autodefinição identitária e o sentido contrário que uma sociedade em peso atribui à identidade desse mesmo sujeito individual ou coletivo.

Se de algumas árvores (individuais) do pensamento do PSD sabemos muito, pouco ou nada sabemos da floresta (do pensamento coletivo). Num tempo de narcisismo intelectual, nunca se fez um trabalho fidedigno sobre o que pensam e como pensam os militantes, simpatizantes e votantes comuns do PSD sobre um conjunto de temas-chave que permita caracterizar o sentido da pertença coletiva ao partido. Em torno, por exemplo, de temas como as relações estado/sociedade, a identidade nacional, o apoio aos desfavorecidos, o tratamento das minorias (raciais, étnicas, religiosas), a imigração, a autoridade/segurança, os costumes, a propriedade privada/pública, os impostos, entre outros.

Caracterizar esse conhecimento implica um trabalho de investigação que parta de um conjunto de pressupostos teóricos bem definidos, que seja suportado numa orientação metodológica consistente de modo a permitir um conjunto de recolhas empíricas qualitativas que incluam, por exemplo, entrevistas abertas, registos do terreno diversos, observação participante. Este tipo de investigação empírica qualitativa é exigente, não permite conclusões de hoje para amanhã e tem como regra de ouro evitar ao máximo condicionar o sentido do discurso/resposta dos interlocutores. E estes devem ser sobretudo pessoas comuns, apenas excecionalmente notáveis.

Na encruzilhada identitária em que o PSD se encontra, será extraordinariamente útil a curto prazo um debate frontal entre os notáveis sobre se o partido é de direita ou de esquerda, assim como a médio e a longo prazos é fundamental que se avance para estudos sistemáticos, e estendidos no tempo, sobre o pensamento de senso comum dos que partilham a identidade do partido.

É difícil identificar caminhos alternativos para revitalizar um grande partido político que pode, deve e tem de fazer muito mais para transformar um país afundado em décadas de esquerdismo.
Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Professor, investigador e ensaísta, doutorado em Estudos Africanos, Observador, 25-10-2019

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