Vinicius Sales
Como o jornalismo tenta alterar os valores
da comunidade por meio da guerra de narrativas e da corrupção da linguagem.
A entrevista realizada pelo
Fantástico com o travesti Suzy Oliveira, no dia primeiro, acendeu no meio
jornalístico o debate sobre a necessidade de transparência por parte dos
profissionais em comunicação. O ponto de polêmica no caso da revista eletrônica
da Globo foi a postura do doutor Drauzio Varella em abraçar um homicida em
solidariedade ao seu isolamento penal há oito anos.
Após a polêmica se instalar
nas redes sociais, Drauzio argumentou que não perguntou sobre os crimes
cometidos por Rafael Tadeu de Oliveira (Suzy) devido a sua profissão como
médico. Vemos aí o primeiro argumento falho, afinal ele estava exercendo a
profissão de repórter quando realizou a entrevista. Segundo a boa prática
jornalística, é de praxe informar ao público o crime cometido por um detento
entrevistado, como de fato foi feito com os outros detentos que aparecem na
reportagem.
Vemos logo no início da
reportagem que ela se trata de uma defesa de tese, em que se joga ao público
uma teoria ou opinião acerca do assunto. Isso pode ser notado quando Varella
comenta a “situação” de travestis na sociedade. “É uma pressão para que a trans
seja considerada marginal, o tempo todo”.
Ao contar histórias sobre
detentos travestis, ele escolhe Suzy como personagem que perpassa outras histórias,
colocando-o como um detento a ser olhado com mais atenção pelo telespectador. A
estranheza no tratamento dado a Suzy se torna gritante quando o crime de Lola,
outro travesti preso, é revelado de forma tácita após ser relatado as
estatísticas sobre travesti presos: “Foi por roubo que a Lola veio parar na
prisão”, informa Varella.
Além do crime não ser
informado, também não é citado que Suzy está “isolada” de outros presos devido
ao seu crime hediondo: estuprou, matou e escondeu o corpo do menino Fábio, de
apenas 9 anos. Em resposta, a TV Globo argumentou que “só depois da exibição do
quadro ficou sabendo da gravidade dos crimes”.
O sociólogo Eduardo de
Alencar, e autor do livro “De quem é o comando? O desafio de governar uma
prisão no Brasil”, conta que o isolamento social de detentos é algo
compreensível, dependendo da gravidade do crime. “O normal é que mães visitem
seus filhos na prisão. Amor de mãe uma é força da natureza. A maior parte delas
aguenta tudo. Inclusive pelo fato que muitas vezes moram num lugar em que é
normal haver alguém com filho preso. O que não é normal, socialmente aceito em
nenhuma circunstância, é um filho monstro. Disso as pessoas correm, afastam-se,
renegam”.
Ele complementa: “Casos de
presos solitários geralmente estão associados a crimes sexuais ou escandalosos,
ou então àquele tipo de criminoso que transformou a vida da família num inferno
- matou irmão, pai ou mãe, bateu, roubou de dentro de casa etc. Os outros
casos, menos normais, de preso sem visita, tem a ver mesmo com o sujeito que já
perdeu os pais, ou mora longe do local de origem da família.”
CONDUTA
No pedido de desculpas exibido
no Jornal Nacional, ele afirma em um determinado trecho que o abraço a Suzy se
deu pela comoção ao saber que o travesti estava solitário por oito anos. Nesse
momento Varella simplesmente esquece que o ato não é apenas uma posição
pessoal, mas também, aos olhos do público, representa a posição da Rede Globo.
Nesse momento, a frase “uma imagem vale mais que mil palavras” se torna uma
verdade absoluta para o telespectador.
Dentre outras práticas
jornalísticas, o distanciamento com a fonte é essencial para o bom
desenvolvimento de uma matéria ou reportagem. O jornalista não necessariamente
precisa ser indiferente ao que está acontecendo, como foi o caso do repórter
Edie Polo, da Rede TV, que abraçou Aparecida dos Santos, mãe do menino morto.
Porém o jornalista precisa ter a clara noção de com quem ele está simpatizando,
criando assim um critério moral para suas ações.
Lembrando que se o padrão
moral do profissional for distante do que é acordado pelo telespectador, o
boicote é quase certo.
Apesar de atuar como médico,
Varella se esqueceu que também é comunicador e exerce a função de repórter. Seu
status devido a seu trabalho social não o exime das críticas por burlar o que é
comumente aceito no jornalismo (e o que é percebido pelo público).
No mesmo pedido de desculpas,
ele se esconde atrás do bordão “não sou candidato”, como se em algum momento os
ataques feitos a ele fossem de natureza eleitoral e não moral, e como se alguém
estivesse dizendo que se solidarizar com um pedófilo assassino fosse uma
estratégia para conquistar votos.
CONDUTA II
A postura da produção de
jornalismo da TV Globo também merece ser avaliada segundo os critérios
jornalísticos e morais. O trabalho de produzir um programa consiste em reunir o
máximo de informações para que os jornalistas estejam munidos na hora de
realizar seu trabalho. A edição também é outro ponto chave que pode elevar um
conteúdo ou jogá-lo no abismo da rejeição. O abraço que catapultou toda essa
polêmica foi decisão dos responsáveis pela seleção do conteúdo gravado (o
material bruto), ou seja, da Edição.
Nisso podemos dissociar a
postura de Varella e a edição do programa: se houvesse uma curadoria preocupada
com o ato feito pelo médico, esse abraço jamais teria sido veiculado em rede
nacional – principalmente quando a segurança pública e a violência estão no
centro do debate público.
INDUÇÃO
Sob o ponto de vista teórico
do jornalismo, o material produzido pela Globo abertamente defende uma agenda:
a de que travestis presos são marginalizados na cadeia e merecem algum tipo de
atenção por parte da sociedade.
O estudo que melhor explica os
efeitos dessa produção é a Teoria do Agendamento, desenvolvida pelos
pesquisadores Maxwell McCombs e Donald Shaw. O estudo foca na capacidade que a
mídia possui em determinar os assuntos que serão debatidos pelo público. A
estratégia envolve publicar constantemente conteúdos acerca de um determinado
tema até que ele "caminhe sozinho". A ideia não é necessariamente
convencer o público, mas normalizar a discussão a respeito, ou empurrar alguma
tese sub-repticiamente. Por exemplo, apesar da rejeição do público e das
críticas à matéria, muitos jornalistas e comentadores conservadores, e muitos
sites de direita, fizeram toda a cobertura do episódio referindo-se a Rafael
Machado como “a transexual Suzy”, tratando-o sempre por pronomes e artigos
femininos, seguindo à risca as demandas da ideologia de gênero, que é uma das
pautas mais caras aos progressistas e ativistas de esquerda.
De certa forma, a Globo
conseguiu influenciar o debate público - afinal Suzy esteve no noticiário por
quase duas semanas. Todavia, se não conseguiu influenciar a massa, que é
conservadora, a adotar uma atitude progressista de solidariedade com um
criminoso desse nível, conseguiu ao menos empurrar a linguagem ideológica aos
mais insuspeitos comentaristas e dissociar a percepção de um fato da sua
expressão linguística.
A corrupção da linguagem para
atender pautas ideológicas é uma vitória do jornalismo militante muito mais
importante do que a imposição de narrativas, pois narrativas são sempre
influenciadas pelo sentido das palavras. De certa maneira, a guerra semântica ainda
precede a guerra de narrativas. Para ressuscitar o jornalismo brasileiro é
preciso restaurar a linguagem pública, e para isso acontecer, os formadores de
opinião precisam resistir à corrupção ideológica da língua.
Título e Texto: Vinicius
Sales, Brasil
Sem Medo, 16-3-2020, 8h59
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