Cuidado, leitores! Já nasceu uma nova mitologia: a Dilma que não faz!
Estatueta em faiança da deusa egípcia Tuéris |
Dilma Rousseff está no poder há dez dias, e já se pode dizer que há uma nova mitologia em construção, combinada, sim, com a que deu o tom das narrativas do governo anterior, mas, em boa medida, oposta àquela. Como toda mitologia política, também essa é falaciosa, destinada a substituir a realidade por uma leitura do real, cujo objetivo último é engrandecer a biografia do chefe; no caso, “da” chefe - talvez haja no Planalto quem prefira “chefa”, para adequar o vocábulo à metafísica influente. Lula era falastrão e buliçoso; Dilma, serena e discreta. Lula opinava sobre qualquer assunto, usando a tragédia ou a comédia para engrandecer a sua pantomima pessoal; Dilma prefere ser esfíngica, falando por meio de assessores. Lula sempre foi o seu próprio coordenador político; Dilma delega a Antonio Palocci as conversas incômodas - ela nem mesmo seria do tipo que suja as mãos com a política.
Noto que a presidente já começa a ser elogiada, e isto é formidável, porque NÃO GERA NOTÍCIAS. O fastio com aquela parafernália midiática lulista está na raiz de certa sensação de alívio, de volta à normalidade, que se experimenta agora, mas convém ir com calma. Não fosse por outra razão, cumpre lembrar que Dilma está só na fase do aquecimento. A nova mitologia, no entanto, já começa a tomar corpo. E, como sempre, a imprensa tem um papel central nessa construção. Na sua coluna de ontem, Elio Gaspari chega a afirmar que há pão (apesar de mais um programa contra a miséria…) e que as pessoas sentem mesmo é falta do circo. Elogio maior não poderia haver. Não se afirma isso de um governo, creio, desde a Roma Antiga - aliás, nem na Roma Antiga, é óbvio…
Ensaia-se até mesmo arranjar uma “mini-herança maldita” para a nova presidente, que, de fato, terá de se haver com algumas dificuldades, e o descontrole nos gastos públicos é uma delas. Tudo muito bem! Mas o governo que finda não era, como se anunciou na campanha eleitoral, fruto da parceria Lula-Dilma? A gastança não foi fundamental para consolidar a sua candidatura? Logo, a herança indubitavelmente maldita para os cofres públicos foi, em tudo, bendita para a então candidata. Pouco importa. A realidade é chata. A fantasia de uma nova era da racionalidade, em substituição à farra impressionista do lulismo, dá o tom da cobertura política. E notem: quanto menos Dilma fala, mais isso se confunde com uma estratégia política sofisticada.
O esforço para caracterizar a nova presidente como a continuidade de Lula, mas sem os defeitos daquele, é evidente. No caso, a sua suposta inexperiência (não ser uma política com trajetória eleitoral), um defeito para a então candidata, teria se tornado uma virtude para a presidente. É claro que se trata de uma rematada tolice. Destaque-se, de saída, que a inexperiência nunca ajudou ninguém. Ponto final. Se os inexperientes acabam bem-sucedidos, alcançam seus objetivos apesar dessa fragilidade, jamais por causa dela. Em segundo lugar, essa Dilma-toda-pura, virgem nos vícios da política, é outra dessas mentiras estúpidas, criadas para distrair certo jornalismo impressionista.
Estou enganado, ou esta é aquela mesma Dilma que, na crise dos cartões corporativos, mobilizou a Casa Civil para produzir o dossiê contra FHC e Ruth Cardoso? Estou enganado ou está é aquela mesma Dilma a quem Israel Guerra, filho de Erenice, chamava de tia? Estou enganado, ou esta é aquela mesma Dilma que chamou seu próprio apagão de blecaute, preferindo atacar, ora vejam…, o governo FHC? Estou enganado, ou esta é aquela mesma Dilma do programa Minha Casa, Minha Vida, talvez o maior golpe publicitário da história republicana?
Ora, senhores cronistas, respeitem um pouquinho a inteligência dos leitores - ou, então, não respeitem e fiquem com os leitores que preferem a bobagem. Ninguém chega à condição de candidata à Presidência do maior partido do país - uma máquina gigantesca que junta os bilionários fundos de pensão e poderosas máquinas sindicais - porque é a Maria Imaculada, a Toda-Pura, a Sem-Pecados. A se dar crédito a alguns textos, parece que Lula é o fauno destrambelhado que, não obstante, carregava no dorso a ninfa da pureza e da razão.
Este blog, vocês sabem, lê a política e também lê a forma como outros lêem a política. Resistimos - e, em boa parte, a desconstruímos - à mitologia do Lula criador de mundos, capaz de mudar a realidade com uma simples palavra. E resistiremos à fantasia da presidente comedida, comprometida apenas com a eficiência, que jamais dá um passo em falso porque é séria, inteligente, compenetrada, severa, austera, pontual, econômica, estudiosa, rigorosa - em suma, uma verdadeira Pascal de tailleur.
Não caiam nessa conversa. Pode até acontecer de eu vir a elogiar Dilma algum dia neste blog. Mas isso só acontecerá em face de algo que ela venha a fazer. Espanto-me com os paparicos do colunismo porque, afinal de contas, até agora, ela preferiu ficar calada.
Reinaldo Azevedo
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