terça-feira, 15 de novembro de 2011

Barbaridade


João Malheiro
O telefonema foi cruel. “Estou a pensar prostituir-me”. Bárbaro mesmo. Ela até se chama Bárbara. Bárbara mesmo. A Bárbara quer trabalhar, a Bárbara afiança que arranjou um emprego, depois de muito porfiar, logo que Dezembro comece. A Bárbara diz que tem a conta bancária a zero, diz que tem dívidas. Diz isso e diz também que tem uma filha para sustentar e um ex-companheiro incontactável.
A Bárbara está em desespero. Tem um carro podre de velho, não tem seguro, já foi multada pela polícia, nem sabe como pagar. Ainda faltam uns dias para Dezembro e a Bárbara tem que comer, a filha tem que comer, elas não têm o que comer. E que importa a renda da casa, a higiene diária, a gasolina, o portátil que já só recepciona chamadas? “Estou a pensar prostituir-me”. A Bárbara até não é pateta nenhuma, fez o secundário, fez mais coisas, fez coisas bem feitas. A empresa onde trabalhava faliu, a indemnização e o subsídio já voaram.
“Estou a pensar prostituir-me”. Claro que era uma saída. Uma saída bárbara para a Bárbara. Tão bárbara, tão bárbara, que exigia resposta pronta. Havia que desmobilizar a Bárbara do seu propósito bárbaro. Tarefa ingente e anti-bárbara. Três contactos à malta da bola, essa mesmo que é mais solidária do que a pintam, tanto bastou para a Bárbara renunciar à sua pretensão bárbara.
A Bárbara prometeu pagar os empréstimos, coisa até pouca para gente de carteira gorda. A Bárbara vai cumprir? Se calhar, não vai. Se calhar, vai fingir que se esqueceu do contributo de três pessoas do futebol num momento bárbaro da sua vida. A Bárbara pode hipotecar a palavra, a Bárbara que disse “estou a pensar prostituir-me” até pode, mais tarde, prostituir-se mesmo. Porquê? Porque o mundo, a julgar por tanta barbaridade recente, parece continuar a desviar-se cada vez mais do caminho da perfeição. Outra razão é que a solidária gente da bola e outra gente mais, não está ali, barbaramente se diga, ao dobrar de todas as esquinas da injustiça. Para infelicidade de tantas e tantas Bárbaras…
Título e Texto: João Malheiro, Destak, 14-11-2011

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