Males morais e prejuízos
materiais sensíveis para o futuro da nação foram deixados pelos oito anos de
governo Lula para a presidente Dilma Rousseff
Fernando Henrique Cardoso
A presidenta Dilma Rousseff
recebeu uma herança pesada de seu antecessor. Obviamente, ninguém é responsável
pela maré negativa da economia internacional, nem ela nem o antecessor. Mas há
muito mais do que só o infortúnio dos ciclos do capitalismo.
Comecemos pelo mais óbvio: a
crise moral. Nem bem completado um ano de governo, e lá se foram oito
ministros, sete dos quais por suspeitas de corrupção. Pode-se alegar que quem
nomeia ministros deve saber o que faz. Sem dúvidas, mas há circunstâncias. No
entanto, como o antecessor jogou papel eleitoral decisivo, seria difícil
recusar de plano seus afilhados. Suspeitas, antes de se materializarem em
indícios, são frágeis diante da obsessão por formar maiorias hegemônicas,
enfermidade petista incurável.
Mas não foi só isso: o
mensalão é outra dor de cabeça. De tal desvio de conduta, a presidenta passou
longe e continua se distanciando. Mas seu partido não tem jeito. Invoca a
prática de um delito para encobertar outro: o dinheiro desviado seria “apenas”
para o caixa dois eleitoral, como disse Lula em tenebrosa entrevista dada em
Paris, versão recém-reiterada ao “New York Times”. Pouco a pouco, vai-se
formando o consenso jurídico, de resto já formado na sociedade, de que desviar
dinheiro é crime, tanto para caixa dois como para comprar apoio político no
Congresso. Houve mesmo busca de hegemonia a peso de ouro alheio.
Mas não foi só isso que Lula
deixou como herança à sucessora. Nos anos de bonança, em vez de aproveitar as
taxas razoáveis de crescimento para tentar aumentar a poupança pública e
investir no que é necessário para dar continuidade ao crescimento produtivo,
preferiu governar ao sabor da popularidade. Aumentou os salários e expandiu o
crédito, medidas que, se acompanhadas de outras, seriam positivas.
Deixou de lado as reformas
politicamente custosas: não enfrentou as questões regulatórias para acelerar as
parcerias público-privadas e retomar as concessões de certos serviços públicos.
A despeito da abundância de recursos fiscais, deixou de racionalizar as
práticas tributárias, num momento em que a eliminação de impostos poderia se
fazer sem consequências negativas: a oposição conseguiu suprimir a CPMF,
cortando R$ 50 bilhões de impostos, e a derrama continuou impávida.
É longa a lista do que faltou
fazer quando seria mais fácil. Na questão previdenciária, o único “avanço” não
se concretizou: a criação de uma previdência complementar para os funcionários
públicos que viessem a ingressar depois da reforma. A medida foi aprovada, mas
sua consecução dependia de lei subsequente, para regulamentar os fundos
suplementares, que nunca foi aprovada.
As centenas de milhares de
recém-ingressados no serviço público na era lulista continuaram a beneficiar-se
da regra anterior. Foi preciso que novo passo fosse dado pelo governo atual
para reduzir, no futuro, o déficit da Previdência.
Que dizer, então, de
modificações para flexibilizar a legislação trabalhista e incentivar o emprego
formal? A proposta enviada pelo meu governo, com esse objetivo, embora
assegurando todos os direitos trabalhistas previstos na Constituição, foi
retirada do Senado pelo governo Lula em 2003. Agora é o próprio Sindicato
Metalúrgico de São Bernardo do Campo que pede a mesma coisa...
Mas o “hegemonismo” e a
popularidade à custa do futuro forçaram outro caminho: o dos “projetos de
impacto” como certos períodos do autoritarismo militar tanto prezaram. Projetos
que não saem do papel ou, quando saem, custam caríssimo ao Tesouro e têm
utilidade relativa.
O exemplo clássico foi a
formação a fórceps de estaleiros nacionais para produzir navios-tanque para a
Petrobras (pagos, naturalmente, pelos contribuintes, seja através do BNDES,
seja pelos altos preços desembolsados pela Petrobrás). Depois do lançamento ao
mar do primeiro navio, com fanfarras e discursos presidenciais, passaram-se
meses para descobrir-se que o custo não fez jus a tanta louvação.
Que dizer dos atrasos da
transposição do São Francisco ou da Transnordestina, ou ainda da fábrica de
diesel à base de mamona? Tudo relegado aos restos a pagar do esquecimento.
O que mais pesa como herança é
a desorientação da política energética. Calemos sobre as usinas movidas “a fio
d água”, cuja eletricidade para viabilizar o empreendimento terá de ser vendida
como se a produção fosse firme o ano inteiro e não sazonal. Foi preciso
substituir o companheiro que dirigia a Petrobras para que o país descobrisse o
que o mercado já sabia, havendo reduzido quase pela metade o valor da empresa.
O custo da refinaria de
Pernambuco será dez vezes maior do que o previsto; há mais três refinarias
prometidas que deverão ser postergadas ad infinitum. O preço da gasolina,
controlado pelo governo, não é compatível com os esforços de capitalização da
Petrobras. Como consequência de seu barateamento forçado — que ajuda a política
de expansão ilimitada de carros com a coorte de congestionamentos e poluição —,
a produção de etanol se desorganizou a tal ponto que estamos importando etanol
de milho dos Estados Unidos!
Com isso tudo e apesar de
estarmos gastando mais divisas do que antes com a importação de óleo, o
presidente Lula não se pejou em ser fotografado com as mãos lambuzadas de
petróleo para proclamar a autossuficiência de produção, no exato momento em que
a produtividade da extração se reduzia.
No rosário de desatinos, os
poços secos, ocorrência normal nesse tipo de exploração, deixaram de ser
lançados como prejuízo, para que o país continuasse embevecido com as riquezas
do pré-sal, que só se materializarão quando a tecnologia permitir que o óleo
seja extraído a preços competitivos, que poderão se tornar difíceis com as
novas tecnologias de extração de gás e óleo dos americanos.
É pesada como chumbo a herança
desse estilo bombástico de governar que esconde males morais e prejuízos
materiais sensíveis para o futuro da nação.
Título e Texto: Fernando Henrique Cardoso,
ex-presidente da República, Blog do Noblat, 02-9-2012
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