Reinaldo Azevedo
Os deuses primeiro tiram a
razão daqueles a quem querem destruir. “Quos
volunt di perdere dementant prius.” Já lembrei aqui este adágio latino a
Lula, mas ele, claro!, não me ouve. No que, do seu ponto de vista, faz muito
bem! Se ouvisse, creio que não teria sido eleito presidente da República,
porque eu, por óbvio, teria reprovado, como reprovo, os métodos a que recorreu
para construir seu partido, para se eleger e para se manter no poder. E é assim
não é de hoje — desde quando, ainda bem jovem, rasguei a minha filiação,
apostando que ele chegaria ao poder. Foi quando criei a expressão “burguês do
capital alheio” (eu ainda era de esquerda) — e, aí sim, tive uma antevisão: não
será bom para as instituições e para a verdade dos fatos.
Em seus oito anos de mandato,
Lula já havia depredado a história o bastante. Um dia, creio, a onda
estupidificante petista na academia reflui, e se poderá, então, serenamente,
narrar o que se deu. De todo modo, o Apedeuta encerrou seus oito anos de poder
elegendo sua sucessora, o que é uma conquista e tanto. Uma aposentadoria
política digníssima se lhe afigurava, com o mito relativamente preservado. MAS
NÃO! O DIABO É QUE, NA CABEÇA DE LULA, SUA OBRA ESTÁ INCOMPLETA.
Ainda há no Brasil, vejam que
ousadia!, quem lhe faça oposição intelectual — não me refiro aos partidos, não!
— e quem não esteja disposto a se ajoelhar a seus pés. Ainda há no Brasil
setores que ele considera recalcitrantes, que merecem a pecha de “golpistas”
porque ousam não concordar com ele. Ainda há no Brasil, por exemplo, uma
imprensa livre também no espírito, não apenas na letra da lei. Se o PT foi
malsucedido no seu esforço de criar um mecanismo de censura, sabe, no entanto,
que foi muito bem sucedido em tornar influentes alguns de seus valores, hoje
bovinamente repetidos por franjas engajadas também da grande imprensa. Há dias,
li em dois grandes jornais textos de “analistas” que afirmavam, por exemplo,
literalmente, que “ninguém ganha com a guerra entra bandidos e polícia em São
Paulo”. Ainda preciso escrever um texto só sobre esse assunto. Imaginem vocês…
Quando alguém escreve essa enormidade, está a igualar os dois lados da suposta
“guerra”, vislumbrando, então, a necessidade de uma “pax”; o que se está a
pedir é uma solução negociada com os… bandidos!
Mas não quero me desviar do foco.
Lula poderia estar exercendo dignamente o seu papel de ex-presidente — ele prometeu, como sempre, ser muito melhor do FHC nisso também… É o que vemos? Não! Dias antes de encerrar seu mandato, anunciou que ele próprio investigaria essa história de mensalão, sustentando ser uma grande tramoia da oposição. Passou a se articular freneticamente nos bastidores para impedir que o Supremo Tribunal Federal cumprisse seu papel. No encontro com um ministro, falou abertamente a língua da chantagem. Conversas de Marcos Valério, reveladas por reportagem de VEJA, informam que aquele que sempre esteve no controle do mensalão (segundo o publicitário), dava garantias que só poderiam sair da boca de um tirano. O Supremo estaria no bolso.
Em associação com José Dirceu
e com outros “duros” do PT, armou a CPI do Cachoeira não para investigar
falcatruas — o que seria meritório; mas está aí a Delta, protegida pelos
petistas —, mas para intimidar a oposição e, de novo!, a imprensa. Lula apostou
tudo na comissão. Era o seu bilhete premiado para as eleições de 2012 e de
2014! Não haveria de sobrar pedra sobre pedra dos oposicionistas, da imprensa
livre, da Procuradoria-Geral da República — lembrem-se de que Collor foi o
escalado para atacar Roberto Gurgel — e do próprio Supremo.
Dos bastidores, chegavam os
ecos trevosos: “Não haverá julgamento! Isso irá para 2013 e, de 2013, para
nunca mais!”. Ao mesmo tempo, ainda que a presidente Dilma negue (e ela nega),
o seu próprio governo passou a entrar no radar do lulismo. O Apedeuta não concordava
com a ideia de uma “faxina ética”, na qual a presidente surfou. Isso fazia
parecer que seu governo era condescendente (ora vejam!) com a corrupção.
O Babalorixá de Banânia, como
sabem, havia prometido “desencarnar”, para empregar o verbo a que ele próprio
recorreu, mas quê… Foi tomado, assim, por uma espécie, se me permitem, de
paixão carnal do espírito. A história política de Lula também poderia ser
contada a partir dos seus ódios. E poucos são capazes de odiar como ele. Ao
longo de sua trajetória política, à diferença do que muitos pensam, não
liquidou apenas adversários políticos, não! Também destruiu aliados. Para
tanto, bastava-lhe ser contrariado. E, como ninguém, soube, desde os tempos de
sindicato, usar as falhas alheias e as circunstâncias em benefício próprio e na
construção de sua própria mitologia.
Lula poderia, reitero, estar
curtindo a sua aposentadoria, mesmo depois do drama pessoal que viveu com a
doença — e até por isso também —, mas ele não se entende fora do poder e da
disputa pelo poder. Reparem que passou oito anos demonizando FHC, usando a
estrutura do estado para atingir a reputação do antecessor. Como nunca, vimos
uma máquina de publicidade oficial dedicada de modo contumaz à mentira. Lula
tem menos prazer em vencer do que em derrotar o outro. Isso distingue, devo
lembrar, um governante virtuoso de um tirano. E Lula só não é esse tirano
porque as instituições que herdou não lhe permitiram. Ele as depredou e
infiltrou nelas germens do mal — inclusive no Supremo —, mas não conseguiu
subordiná-las a suas vontades.
Enlouquecendo
Tentou fazer da CPI a razia
final contra o que resta de oposição e contra a imprensa. Não deu! Tentou
destruir a reputação do procurador-geral da República. Não deu. Tentou macular
a independência do Supremo. Não deu. Tentou se construir como a alternativa a
Dilma (“caso ela não queira disputar a reeleição”, ele sugeriu…). Não deu.
Tentou impedir o julgamento dos mensaleiros. Não deu. Tentou criar uma mentira
sobre aqueles fatos escabrosos. Não deu. Tenta agora eleger Fernando Haddad em
São Paulo para ter como chantagear depois o próprio governo Dilma. O jogo não
está jogado, mas está difícil. Sai Brasil afora a vociferar contra candidatos a
prefeito de partidos de oposição, numa espécie de guerra santa desesperada
contra os dragões da maldade. O resultado, por enquanto ao menos, não é muito
animador. Ainda que seu projeto paulistano dê certo — não parece que vá —, o PT
pode sair dessa disputa municipal menor do que entrou.
E eu ousaria dizer que o
principal culpado pelas dificuldades que o partido passou a enfrentar é Lula.
Acostumado a jamais ser contestado — e pobre daquele que a tanto ousar —;
incensado como dotado de uma intuição genial, que lhe teria sido transmitida
pelo leite materno por mãe nascida analfabeta (a minha já nasceu citando
Schopenhauer no original…); aplaudido por gente como Marilena Chaui como aquele
que, ao falar, ilumina o mundo; recentemente reverenciado por Marta Suplicy
como o próprio “Deus” (nada menos!), Lula foi perdendo a razão, caminho certo
para a autodestruição.
É claro que ele não vai
acabar. Continuará a ser uma pessoa influente na política e no PT por muito
tempo. Mas é o mito que passa — e, nesse particular, sua loucura é um bem para
o país — por um processo acelerado de corrosão. Talvez ainda se elegesse
presidente no primeiro turno (em São Paulo, quem está na frente é Russomanno,
afinal…), mas são as suas virtudes demiúrgicas junto a setores influentes da
política que estão se esfarelando.
Lula errou feio. Errou quando
decidiu emparedar o Supremo. Errou quando decidiu emparedar a imprensa livre.
Errou quando decidiu usar uma CPI como instrumento de vingança. Errou quando
decidiu que basta mandar para o eleitor obedecer. Errou quando decidiu ser um
condestável da República, disputando influência com a própria presidente da
República.
Errou feio, em suma, quando
acreditou que, de fato, era Deus. E ele é apenas um homem, mais falível, em
muitos aspectos, do que a esmagadora maioria. Afinal, o destino lhe sorriu e
lhe foi dado governar um país por oito anos. Poderia ter seguido seu antecessor
num particular: entregar instituições mais sólidas do que encontrou. Ele
preferiu depredá-las de forma sistemática, contínua e dedicada.
Lula, quem diria?, ainda será
o melhor biógrafo de Lula. A ambição desmedida do homem acabará por revelar os
pés de barro do mito.
Título e Texto: Reinaldo Azevedo, 20-9-2012
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