Rivadávia Rosa
"Nos anos 30, a família
foi até institucionalizada enquanto responsável solidária penal. Isso chegava
ao ponto de que filhos, a partir de 12 anos, sob ameaça de pena capital, eram
responsabilizados pelos atos de seus pais; o que significava que o Estado
tomava crianças como reféns, ameaçando-as de fuzilamento se seus pais
apresentassem atividades “contra-revolucionárias”. Também essas são medidas e
leis inéditas na história humana. Em que conceito de “classes” queria se
enquadrar isso? Quais categorias sociológicas poderiam mesmo ser encontradas
para tanto? Obviamente tratava-se de grupos de pessoas que eram desmascaradas
enquanto inimigos naturais hereditários, genéticos, do poder soviético,
apenas ao longo do processo dos expurgos políticos, sendo por isso excluídos
enquanto defeituosos, perigosos e nocivos.
Pontualmente isso beirava um
racismo social. Um de seus ideólogos principais foi Máximo Gorki. Em várias
cartas abertas, a intelectuais ocidentais, reunidas sob o revelador título Aos
humanistas, denunciava, em locuções sempre renovadas e mais crassas, o
“instinto animal de propriedade” e o “individualismo zoológico” dos culaques,
que preferiam enterrar seus grãos ou abater seu gado a disponibilizá-lo ao
universo proletário. Chamava os “burgueses” de “parasitas da humanidade”, assim
como “também entre animais há feras que mais destroem do que conseguem comer”.
Esses textos deviam provar ao mundo por que era justificado desbaratar tais
“parasitas” e “vagabundos” para construir uma forte e saudável comunidade
socialista e retirar cirurgicamente os focos de infecções por eles causados no
corpo social.
Diante de todos esses
aspectos, não é correto afirmar que uma política de liquidação de completas
camadas sociais e categorias de pessoas “geneticamente” nocivas preenche os
requisitos de genocídio? Michail Heller e muitos outros chamaram a
eliminação dos culaques de um “genocídio socialista”. Os autores do Livro Negro
vão ainda mais adiante denominando toda a prática histórica dos partidos
comunistas governantes um único e prolongado “genocídio do próprio povo”. A
questão não é se esta categoria é admissível em termos morais, mas se é precisa
em termos históricos, se atinge o específico na prática dos bolchevistas bem
como, depois, dos partidos comunistas que chegaram ao poder em outros países.
Isso pode justamente elucidar
o olhar comparativo sobre o nacional-socialismo. O assassinato dos judeus
europeus e, de forma similar, dos ciganos, certamente seguiu a pura lógica de
um genocídio, isto é, de eliminação voluntária e, preferencialmente, completa,
de determinado gene ou espécie de homens extraída, por definição, da
comunidade humana. O processo decisório no sentido da “solução final da questão
judaica” parece ter perpassado diversos graus de radicalização, mas desde seu
início seguiu a lógica de tal plena declaração de inimigo.
Não foi, essa, a primeira nem
a última tentativa de um genocídio no século 20. Já o assassinato maciço dos
armênios, organizada pelos jovens turcos na Primeira Guerra Mundial, enquanto
ato de justificativa político-ideológico friamente executado, tinha o caráter
de genocídio. “Singular” foi o assassinato dos judeus também porque, e na
medida em que representou a tentativa mais radical de um genocídio. Na base de
argumentos pseudo-científicos, biológico-raciais, pretendia-se eliminar
completamente, e sem deixar vestígios, por meios burocráticos e tecnológicos,
toda uma espécie humana. A isso correspondiam as formas e circunstâncias enfim
utilizadas: o envio de pessoas, de preferência desavisadas, entre crianças e
senis, diretamente à morte, que deveria ser organizada de forma racional e
“indolor”. Essa última escalada deu-se, após os fuzilamentos em massa da
primeira fase de guerra, em razão da autocomiseração e do comodismo dos
assassinos. Por isso a instalação de campos de extermínio fora das fronteiras
do Reich – nos territórios de ninguém, do chamado Governo-geral –
que possibilitou sua administração por um vergonhoso mínimo de pessoal. Por
isso a invenção das câmaras de gás e dos grandes crematórios, em que se
expressava tão claramente quanto possível a mera razão do aceleramento do
assassinato em massa. E por isso o casulo do silenciar e do segredo formal
enredado já com burocráticas regulamentações lingüísticas tais como
“evacuação”, “tratamento especial” ou “solução final” em torno desse crime
secular.
É, principalmente, esse
caráter extremamente comprimido, em tempo e espaço, o extremamente organizado,
burocrático, sem paixões, o abstrato, no fundo, do empreendimento que o torna
inédito na História da Humanidade. Nesse sentido, o assassinato
nacional-socialista dos judeus foi um extremo, um extremo na desumanização na
comunidade humana. E, enquanto tal, fixou-se na memória da humanidade."
(KOENEN, Gerd. Utopia do Expurgo – O que foi o comunismo? Ijuí/RS: Ed.
Unijui, 2009, pp. 258-260)
Título e Texto: Rivadávia Rosa, 26-9-2012
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