Adriano Nunes da Costa
Manifesto dos
Pintores Futuristas (1910)
Com essas palavras, o artista
plástico Umberto Boccioni (Itália, 1882-1916), em conjunto com outros grandes
nomes de seu tempo, imprimiu na pedra de toque da arte a linha geral que não só
inspiraria o pensamento futurista italiano – do qual fez parte e cuja
existência auxiliou a legitimar enquanto teórico e participante ativo do
movimento -, como também determinaria a condução do seu próprio processo
criativo ao longo de sua vida.
Boccioni nasceu no final do
século XIX e viveu sua mocidade em uma época de rápidos avanços tecnológicos. A
presença dos aviões começava a se notar nos céus; nas cidades, o cotidiano era
gradualmente readaptado para lidar com a emergência dos automóveis e a agitação
dos primeiros arranha-céus; e os aprimoramentos na geração e distribuição da
energia elétrica estimulavam a vida noturna tanto das metrópoles quanto das
zonas rurais, iluminando as noites e as tornando cada vez mais movimentadas.
Procurando honrar o princípio
futurista – de trazer para os campos da arte o aspecto mais cinético da vida
moderna -, o pintor e escultor italiano voltou-se para essa efervescência
dinâmica e avassaladora da era moderna, que parecia aflorar o que há de mais
inconstante na própria existência, e daí, extraiu a inspiração que o motivou a
retratar, em grande parte do rol de suas obras, o movimento e a ideia da
turbulência inerente à vida.
“Propomo-nos a (…)
interpretar e glorificar a vida de hoje, incessante e tumultuosamente
transformada pelas
vitórias da ciência…”
Manifesto dos
Pintores Futuristas (1910)
A rápida evolução do mundo
ecoava em Boccioni e o fascinava. Se antes esse mundo parecia assentado de tal
forma em costumes e tradições que o engessavam, estagnando-o ao ponto da
previsibilidade, agora acelerava-se pelo progresso (em suas mil variantes) em
um turbilhão de formas e cores, rompendo com antigos paradigmas e assumindo
novos padrões apreensíveis somente pela duração de um piscar de olhos, antes de
se modificarem em novos arranjos tão fugazes quanto os que os antecederam.
Esse frenesi elétrico, motriz
e rearranjador, que reduz a vultos a nitidez dos traços do objeto pela rapidez
de sua transformação, foi pelo artista retratado em diversos quadros e de
diferentes maneiras, mas possivelmente, encontrou sua expressão mais literal
nos quadros Dinamismo de um Jogador de Futebol e Dinamismo de um Ciclista –
verdadeiras visualizações gráficas desse conceito, em muito similares ao que
apenas posteriormente seria igualado pela computação.
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Umberto Boccioni, Dinamismo de um jogador de futebol, 1913 |
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Umberto Boccioni, Dinamismo de um ciclista, 1913 |
Se a jóia recebe o valor do
metal ou da pedra que a confecciona, a uma obra de arte pode-se igualmente
creditar, à notabilidade de sua essência, uma macia porção de mérito ao
material que a constitui e a edifica aos olhos do público. Não poderia ser
diferente com uma das mais notáveis obras de Boccioni: ciente das limitações do
pincel e da tela enquanto implementos de comunicação da sua visão artística,
ele procurou não nas tintas, mas no gesso¹, as propriedades necessárias ao
material que melhor poderia instrumentalizar a mensagem que desejava trazer ao
mundo com Formas Únicas de Continuidade no Espaço, talvez sua mais conhecida
escultura atualmente.
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Umberto Boccioni, Formas Únicas de Continuidade no Espaço, 1913 |
De linhas anguladas que evocam
a fluidez e leveza quase insubstanciais de uma figura humana em movimento, a
escultura se comunica física e meta-linguisticamente com os que tentam entender
sua complexidade visual. A superfície sólida pré-cinzelada e informe do gesso
original, pela mão de Boccioni, transfigurou-se em um arrojado semblante de
notável aerodinâmica, que dirime a bruteza de sua constituição com a suavidade
de uma aparência melíflua, que parece dançar ao sabor da mesma brisa contra a
qual se desloca, obstinadamente.
Com isso, o elemento estático
da matéria, tão inerente às esculturas, é então subvertido pelo dinamismo
etéreo de sua plasmagem, que remete a um efeito de moção recém-interrompido:
como se os padrões que enxergássemos em Formas tivessem se solidificado em algo
discernível tão somente após a fixação do nosso olhar. Fértil tal como é, a
imaginação permite supor que essa efêmera e frágil constância teria a
capacidade de se desfazer tão logo se afaste o observador, cedendo lugar a novos
e imprevisíveis arranjos que somente a aleatoriedade poderia produzir.
Semelhar Formas a um estado
quântico – igualmente sensível à presença de um observador – materializado
parece não se afastar em demasia das intenções originais do escultor, que se percebia
um entusiasta do progresso e das inovações que nos permitem vislumbrar mais
próximo o horizonte do futuro; e, ao mesmo tempo, é um artifício que permite
aproximá-la, igualmente, do cientificismo que amplia o escopo de interpretações
a seu respeito.
Supondo que se encare a
escultura tão somente como uma representação física da ideia do movimento, uma
outra noção lhe seria então pertinente, senão ancilar: a do tempo. A mobilidade
só pode ser percebida em função de uma percepção cronológica que o acompanhe,
de modo que convergem em um só horizonte o deslocamento físico e o temporal do
objeto.
Ao trabalhar com o movimento,
Boccioni concilia também a operação do tempo; e como consequência dessa
ambivalência, Formas pode também ser encarada como uma escultura que não apenas
transcende o sólido da matéria para a leveza das formas, mas também que
atravessa dimensões, nos aproximando nesse ínterim da própria noção do
tempo-espaço, para transmitir ao seu apreciador tanto a interligação do tempo,
do momento e do movimento, quanto a essencialidade definidora dessa tríplice
tornada una para o universo do qual fazemos parte.
Título, Imagens e Texto: Adriano Nunes da Costa, publicado
originalmente em www.plastiamagazine.com.br
em 5 de maio de 2017
¹ Cópias subsequentes da estátua foram confeccionadas em bronze. Uma se
encontra no MASP – Museu de Arte de São Paulo.
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