Rui Ramos
O radicalismo explora hoje o chamado
“populismo” como um espantalho para eliminar a esquerda moderada. A lógica é
esta: se Trump é um Hitler, o seu inimigo tem de ser Estaline.
As eleições na América já não
interessam apenas, como no tempo de George Bush, por ocorrerem na maior
potência do planeta. Os EUA tornaram-se, com Donald Trump, uma espécie de
laboratório da política ocidental. E uma das coisas que, por exemplo, podemos
compreender na América é porque é que a esquerda portuguesa anda a descobrir que,
afinal, o PSD e o CDS são as SS à paisana.
Nunca, como nas eleições de
terça-feira, os Democratas tinham proposto candidatos tão radicais, gente para quem a etiqueta
de “liberal” (no sentido americano) já não chega, mas que se diz “progressista”
e até “socialista”. Ora, isso só se tornou possível graças ao uso que têm feito
de Trump. Desde 2016, que o fracasso de Hillary Clinton tem servido à corrente
identificada com Bernie Sanders, grande adepto da ditadura cubana, para demonstrar
que, contra Trump, a moderação é um erro: é preciso radicalizar, isto é, fazer
à esquerda o que supostamente Trump teria feito à direita, porque a partir de
agora só se ganhariam eleições graças ao fervor dos mais fanáticos. Se Trump é
um Hitler, o seu inimigo tem de ser Estaline.
A extrema-esquerda explora
hoje o chamado “populismo” como um espantalho para submeter as outras
esquerdas. Viu-se isso no Brasil, onde o PT tentou aproveitar Bolsonaro para
obrigar toda a gente que não quisesse ser denunciada como “fascista” a votar em
Haddad. E onde não há Trumps e Bolsonaros, inventam-se. Em Portugal, o Partido
Socialista governa o país com os fãs de Estaline e de Chávez. Para justificar a
“frente popular”, a direita teve de voltar a ser acusada, como no PREC, de “reacionária”
e “salazarista”. Nem precisa, para isso, de defender a ditadura de Salazar ou
qualquer outra. Basta que, como Fernando Henrique Cardoso, não ache Haddad uma
alternativa a Bolsonaro. Foi assim que Assunção Cristas se tornou uma ameaça à
democracia, e Francisco Louçã um defensor da democracia.
É verdade que a radicalização
não deu vitórias, nem no Brasil, nem agora nos EUA. Numa eleição que todos
entenderam como um referendo a Trump, a maioria democrata na Câmara dos
Representantes, muito mais pequena do que seria de esperar, serviu apenas para
os comentadores declararem a América “dividida”. Para os radicais, porém, o objetivo
não é derrotar a direita, mas eliminar os reformistas que dominaram as
esquerdas nos anos 90, no tempo de Bill Clinton e Tony Blair. A polarização
sectária tem servido para isso: na Inglaterra, o Partido Trabalhista sob Jeremy
Corbyn, “amigo” da Venezuela chavista, é já uma espécie de
Podemos. É de bom tom clamar contra os populismos. Mas a absorção da esquerda
por esta salada russa de nostalgia soviética e sectarismos identitários, fortemente marcada pelo antissemitismo, não é menos
ameaçadora para a democracia representativa e a economia de mercado.
De facto, Trump e o
radicalismo têm-se alimentado um ao outro. Sob a influência radical, o ataque a
Trump deixou de ser a crítica de um presidente com más ideias e modos
grosseiros, para passar a ser um ataque a todos os que não pensam como os
radicais: já não é Trump, é toda a direita que, só por ser direita, é racista,
misógina, etc. À direita, houve sempre críticas e reservas a Trump. Mas a agressão indiscriminada
confunde tudo, e branqueia o demagogo oportunista, ao permitir-lhe passar por
apenas mais uma vítima, entre tantas, do facciosismo esquerdista: o que dizem
de Trump (ou de Bolsonaro) não é, afinal, muito diferente do que, usando
os mesmos métodos, dizem de Churchill.
Aos que reclamam ser moderados
na esquerda talvez conviesse duas coisas: deixarem de exigir à direita
democrática condenações de Trump ou de Bolsonaro nos mesmos termos em que os
radicais as exigem, como um exercício de auto abjecção e renúncia a quaisquer
ideias próprias, e libertarem-se da mania de tratar todos os que têm outro
ponto de vista como “salazaristas” e “reacionários”. Para os radicais, faz
sentido; para os moderados, é apenas uma estupidez.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
9-11-2018
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