sexta-feira, 29 de março de 2019

Trump, os russos e Portugal

Paulo Tunhas

Emitir abundantemente opiniões, exercer um jornalismo militante - sim. Mas informar, oferecer informação que os espectadores possam livremente avaliar segundo as suas próprias luzes - não.

Passei umas horas da tarde deste último domingo em frente à CNN, à espera que fosse divulgada a carta do procurador-geral William Barr ao Congresso americano onde se resumiriam os principais resultados do relatório de Robert S. Mueller sobre a investigação por ele dirigida e que se destinava a averiguar se houve ou não conluio de Donald Trump ou de membros da sua campanha com os russos para interferir nas eleições presidenciais de 2016.


Por volta das sete e meia já se sabia tudo. A carta do procurador-geral era perfeitamente clara: não foram encontradas quaisquer provas que levassem a concluir a existência de conluio de Trump ou de membros da sua campanha com os russos. Quanto à outra questão investigada, a de saber se houvera tentativas de obstrução à justiça por parte de Trump, a carta revelava que o relatório de Mueller não concluía nem o crime de Trump nem a sua inocência. Lendo-a, fica-se com a impressão que a recusa de adoptar uma posição clara se deve à ausência de critérios absolutamente seguros para avaliar as declarações públicas dele relativamente à natureza da investigação de que era alvo. De qualquer maneira, foi uma vitória em toda a linha de Trump.

Naturalmente, a CNN ficou desiludida, para não falar dos democratas. Não se criam esperanças sanguíneas impunemente, e a esquerda americana criou-as como gente grande. O desejo do impeachment fazia alucinar a absoluta necessidade da culpa de Trump, e isso mesmo antes do início, há dois anos, da investigação de Mueller. Era ontologicamente impossível ele não ser culpado. E quando se cai de tão alto é impossível não doer. Para mais, o esquerdismo galopante que tomou conta dos democratas, algo com que, talvez por desatenção, nunca sonhei, vem pôr ainda mais sal na ferida. Confesso que me é difícil deixar de pensar que tanta cegueira e tanto irrealismo mereciam um corretivo destes.

De qualquer maneira, e por muito que se embirre com as obsessões da CNN e com a fantástica radicalização dos democratas, não é por aí que o mundo sai dos gonzos. Dito de outra maneira: apesar de todo o ruído e todo o furor, não há nada do que se passa nos Estados Unidos que seja verdadeiramente incompreensível. Em contrapartida, Portugal oferece sempre surpresas, mesmo ao espírito mais habituado ao convívio com o fantástico. E a noite de domingo trouxe-me uma delas.

Depois de ouvir alguma conversa na CNN, liguei o Jornal das Oito da SIC. A minha intenção não era completamente inocente. Estava com alguma curiosidade em saber como é que a SIC, que, mais ainda do que os outros canais portugueses, considera sua missão pessoal combater a nefasta influência de Trump nos Estados Unidos, no planeta e em todo o sistema solar, lidava com a notícia sobre o relatório Mueller. Como todos os portugueses, tenho direito aos meus momentos de Schadenfreude.

Bom, começou o Jornal, e durou, durou, e depois houve Marques Mendes (que, por acaso, lá disse umas palavras críticas sobre Trump a propósito de uma coisa qualquer), e depois continuou o Jornal, e continuou, continuou, até acabar sem uma só referência ao relatório Mueller. Convenhamos que era estranho. Apesar de tudo, não se contam as vezes que a história do conluio com os russos gozosamente tinha vindo à baila nos últimos anos. Alguma importância a coisa haveria de ter.

Nestes casos, nada como ser persistente. A seguir ao Jornal das Oito vinha o Jornal de Domingo. Era preciso talvez esperar. Mas o Jornal de Domingo começou, e depois continuou, continuou, e depois houve Ana Gomes (que, por acaso, também lá disse umas palavras críticas sobre Trump a propósito de uma coisa qualquer), e o Jornal continuou, e durou, durou, e nenhuma palavra. Volto a insistir: sobre um assunto que costumava ocupar a SIC com uma frequência extravagante. Nenhuma palavra? Enfaticamente, não é verdade. Às nove e cinquenta e sete, o locutor anuncia “uma informação com poucos minutos”: o relatório Mueller tinha inocentado Trump de qualquer conspiração com os russos. Num minuto e meio, a notícia estava dada – e o Jornal tinha acabado, para dar lugar a um programa sobre futebol.

Não vale a pena elaborar sobre como tudo seria muito diferente caso Mueller tivesse decidido pela culpa de Trump. Nestas coisas, dá-me uma preguiça infinita. Mas a notícia certamente teria vindo célere e afoita, acompanhada de uma longa discussão. Assim – “ó pá, temos de dizer alguma coisa…” -, duas horas e meia foram reduzidas a uns “poucos minutos” e a fartura verbal substituída por um laconismo extremo.

Qual a moral desta história? Das duas uma: ou a SIC é constituída por péssimos profissionais que nem sequer a CNN veem, ou então labora voluntariamente na má-fé. Em qualquer dos casos, parece não levar muito a sério a sua tarefa de informar. Emitir abundantemente opiniões, exercer um jornalismo militante — sim. Mas informar, oferecer informação que os espectadores possam livremente avaliar segundo as suas próprias luzes — não. Ao ponto de quase se calar aquilo que, por uma razão ou por outra, colide com o seu imoderado apetite pelo Bem.

Isto valia a pena ser dito, mesmo correndo o risco de passar por um sinistro representante da alt-right, que é a expressão que os espíritos com certa ambição à sofisticação agora utilizam com a mesma mendacidade e a pesada ligeireza com que em tempos não muito longínquos utilizavam a palavra “fascista”. Já agora: pobres tipos…
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador, 28-3-2019

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Um comentário:

  1. A "lengalenga" da SIC (acompanhado pelo DN, Expresso e outros) sobre o Bolsonaro é idêntica.
    Parabéns, PT.
    Maria Alva

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