Rui Ramos
Os cidadãos não vão pagar os novos passes
quando os carregarem, mas quando descontarem para o IRS, liquidarem o IVA das
compras ou esperarem pelo comboio que circula atrasado
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Foto: José Sérgio/SOL |
Como é que o governo pode
oferecer passes baratos, e ao mesmo tempo extinguir o défice do Estado? É muito
simples: aumentando os impostos e não garantindo, por falta de investimento, o
regular funcionamento dos transportes púbicos. Não é por acaso que na mesma
época em que nos anunciam o milagre dos passes, continuamos a descobrir os
recordes deste governo: a carga fiscal mais alta de todos os tempos em 2018, a juntar ao investimento público mais baixo de sempre em 2016.
Não, os passageiros dos transportes públicos de Lisboa não têm razões para
agradecer passes a 30 euros. Porque esses passes não vão ser pagos quando forem
carregados, mas quando descontarem para o IRS, liquidarem o IVA das compras ou
esperarem pelo comboio que circula atrasado ou não circula por falta de peças. Tal como não há
almoços grátis, também não há passes grátis.
As oposições preferiram pegar
no milagre dos passes pelo lado da desigualdade territorial: todo o país vai pagar pelos
utentes dos transportes públicos metropolitanos, sem perspectivas de beneficiar
da mesma liberalidade. Mas aqui não há apenas uma injustiça. Há um cálculo
eleitoral cínico, porque obviamente alguém fez contas aos votos e percebeu onde
é que as eleições se ganham e perdem em Portugal.
Imaginem agora a alternativa.
Em vez de distribuir passes a preços de saldo, o governo tratava de criar
condições para baixar a carga fiscal e conter a inquisição tributária que lhe
está ligada. Ou seja, em vez da opção de comprar um passe mensal a 30 euros,
dava ao cidadão, não lhe tirando tanto dinheiro, a possibilidade de escolher entre
comprar um passe ou comprar outra coisa qualquer ou até poupar, conforme as
suas conveniências. Quais as desvantagens em o Estado gastar menos e deixar
mais dinheiro no bolso dos cidadãos? Para o Governo, haveria esta enorme
desvantagem: diminuiria a sua capacidade de controlar a vida das famílias e dos
indivíduos, e de, por essa via, aparecer como o Pai Natal em véspera de
eleições.
Dirão alguns: os impostos
pagos por todos permitem acorrer aos mais necessitados. Mas este apoio não
exigiria semelhante carga fiscal, que aliás não poupa os mais pobres. Pelo contrário, os impostos
têm, entre outros, o efeito de aumentar o número dos necessitados, ao diminuir
o rendimento de que as famílias podem dispor autonomamente, tornando-as por
isso mais dependentes do Estado.
Mas o sistema socialista é
precisamente isto: um mecanismo de apropriação estatal dos recursos da
sociedade, de tal modo que seja sempre o poder político a decidir da sua
distribuição e da sua alocação. Queiram ou não queiram passes, são os passes
que hoje estão disponíveis, como nas célebres lojas soviéticas, onde, conforme
as piruetas do planeamento central, por vezes faltava leite, mas havia
carrinhos de linha a preços fantásticos.
Já muita gente explicou as
consequências econômicas e sociais deste sistema, a rigidez que cria, o mau uso
dos recursos, os desequilíbrios recorrentes, as desigualdades. Mas é preciso
perceber ainda o que isto significa politicamente: trata-se da maneira mais
subtil de compatibilizar a democracia com a oligarquia, isto é, de permitir que
uma pequena claque de amigos e de famílias, como aquela que atualmente reina
em Portugal, manipule o voto de todos. É através do favorecimento ou da
ilusão de favorecimento de determinadas classes de eleitores, que os oligarcas
tecem as malhas do bunker eleitoral que os poupa aos custos de uma ditadura sem
terem de renunciar aos deleites de um poder quase tão autocrático. Por isso, a
causa do liberalismo é hoje a causa da democracia.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
2-4-2019
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