As ideias que partilhamos neste ensaio
jamais servirão propósitos de culpabilizar qualquer pertença racial (branca,
negra e as demais), apenas ajudar a compreender os significados das suas
existências
Gabriel Mithá Ribeiro
Não quer continuar na
pele de idiota? Então destrua toda e qualquer insinuação sobre a sua pertença a
uma seita potencialmente racista, isto é, identificada com o crime,
uma vez que da sua mancha racial você jamais se livrará e, quem sabe, já a
transmitiu ou transmitirá a filhos, netos, bisnetos, por aí adiante. Mamadou
Ba, Joacine Katar Moreira, Isabel Moreira, Fernanda Câncio, Boaventura de Sousa
Santos, Chico Buarque e todos os antirracistas encartados de Portugal, Brasil,
restante Europa, Estados Unidos da América ou mundo são irrelevantes. O seu
inimigo é você, é a sua consciência branca.
Não duvidemos que a
consciência digna do nome é simplesmente humana, universal, não tem cor. Todavia,
há décadas que a sua foi tomada de assalto e pintada de consciência
branca, sinônimo de consciência pesada, e é você quem tem
estado encarregue de preservar e abrilhantar a pintura. Aos antirracistas
basta-lhes a sugestão da existência da consciência negra, antônima
da sua, a consciência leve. Fazem-no a toda a hora e em toda a
parte – no ensino, literatura, imprensa, cinema, música, conferências,
arruadas, debates, encontros, protestos – e você quebra, não consegue resistir
ao papel de contraparte.
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Manifestação no Porto |
Se não sabe, o Brasil alcançou
o nirvana no início do ciclo glorioso da governação do Partido dos
Trabalhadores, o PT, quando, em 2003, imaginando-se na época da escravatura,
instituiu 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra. Nesse
campeonato de cores, no entanto o supremacista antirracista é o camaleão, a
pele branca que se autoconvence possuidora de uma sofridíssima consciência
negra capaz de fazer inveja aos negros mais negros de pele. E se algum
destes se atreve a recusar o estatuto de vítima será denunciado, pelo camaleão,
de inverter a ordem natural das raças, pele negra com consciência
branca.
Em 1949, George Orwell
imaginou um mundo distópico que chegaria em 1984. Acabou
ultrapassado pelos absurdos da realidade em número, gênero e grau a ponto de,
entre 2010 e 2013, eu ter necessitado de uma longa terapia para tornar a minha
consciência incolor, simplesmente humana. Foram três anos em que me submeti a
uma aturada pesquisa pós-doutoral sobre o racismo.
Li o que havia para ler de
grandes e pequenos especialistas. Porém, porque a vida vivida nunca repousa,
incluí na minha autoterapia o dever de confrontar as teses acadêmicas escritas,
por isso estáticas, com a vida concreta de pessoas comuns, sempre dinâmica.
Durante cerca de sete meses fiz o que se chama trabalho de campo,
distribuído pelos anos de 2010 e 2011. Calejado pela experiência anterior com
as teorias sobre o colonialismo que descartavam a vida vivida
pelos negros colonizados comuns, sabia que a ciência universitária é exímia em
produzir ilusões muitíssimo mais armadilhadas do que Orwell alguma vez teria
sido capaz, e a ciência do racismo encabeçava a lista das
suspeitas.
Trata-se de um saber
científico cujas patentes estão reservadas apenas a uma subespécie
racial, a branca progressista de esquerda, que não apenas usurpa a
representatividade das demais subespécies raciais brancas, como ainda usurpa as
diversas sensibilidades genuínas de negros, índios, mulatos, mestiços,
japoneses, indianos, árabes, por aí adiante. Ciência sobre todas as raças quase
só elaborada e, seguramente, tutelada e instigada por uma subespécie de apenas
uma das raças não constituirá a definição mais-que-perfeita de racismo?
Por isso, caro leitor, só a si
compete avaliar as duas conclusões inabaláveis a que cheguei. Uma, o racismo
foi um fenômeno histórico que teve relevância social inquestionável num dado
contexto temporal. Outra, com o fim da discriminação racial formalmente
instituída nos Estados Unidos da América, do nazismo, da colonização europeia,
da guerra fria e do apartheid sul-africano deixou de ser possível comprovar
empiricamente a persistência do fenômeno e, desse modo, o racismo deixou de
existir.
Como, na atualidade,
não é mais possível comprovar a persistência de fronteiras raciais, as nossas
sociedades são equiparáveis a um sujeito que a cada dia agrava a ambição de
derrubar o muro de Berlim, se necessário pela violência, fazendo por ignorar
que esse mesmo muro foi derrubado há três décadas, em 1989.
Não é mais possível colher
evidências empíricas que assegurem, na atualidade, a existência de lógicas
raciais discriminatórias com um sentido claro, isto é, que responsabilizem uma
das partes e inocentem a outra. De resto, o racismo ou está dentro das
instituições, em particular as tuteladas pelo Estado, como os órgãos de
soberania, ensino, justiça, polícia, repartições públicas, transportes, sendo
visível na cor da pele exclusiva ou racialmente hierarquizada dos seus
funcionários e servidores, ou não está. Um Estado tem de ser necessariamente
assim para ser justo, mas deixa de o ser quando impõe à força esse mesmo modelo
à Sociedade atropelando a liberdade, a autonomia ou as escolhas subjetivas
desta. Não hesite em designar essa tentação de totalitária, criminosa.