Pedro Almeida Vieira
Sendo eu de ‘esquerda’, aquilo que mais me irrita e faz sair do sério é quando alguém, supostamente de ‘esquerda’, se mete a culpar a ‘direita’ de algo que nada tem a ver com ideologias. Percebe-se a estratégia – criar uma clivagem, identificar um suposto inimigo ideológico, para que haja uma decisão política favorável –, mas isso é passar um atestado de indigência e sobretudo retirar a responsabilidade aos verdadeiros culpados. E não permitir uma reflexão e discussão sérias.
Hoje, a jornalista e antiga diretora-adjunta
do Público Ana Sá Lopes veio defender a nacionalização da Global Media. Veio tratar de
fazer a ‘cama’ para deitar os desejos de políticos – e.g., Marcelo Rebelo de
Sousa, Rui Moreira, Carlos Moedas e Pedro Adão e Silva – em se meter dinheiro
dos contribuintes (porque não há ouvintes e leitores suficientes) para assim
simplesmente se salvarem empregos de jornalistas que, durante anos,
contribuíram para a degradação do seu ‘produto jornalístico’ a ponto de hoje
ser já um ‘produto comercial’ sem interesse nem préstimo.
Ao contrário daquilo que
defende Ana Sá Lopes – que funciona aqui como ’porta-voz’, porque sei que o seu
ponto de vista é comungado pela generalidade da corporativa classe jornalística
–, não vivemos “um momento totalmente crítico na imprensa”. De facto, vivemos
sim um momento de clarificação.
Por exemplo, um jornal como o
Diário de Notícias – por mais que simpatizemos com a sua vetusta idade (foi
fundado em 1864) – não pode sobreviver se atrai apenas 1.500 pessoas para
comprarem a sua edição diária contando com uma equipa de três dezenas de jornalistas
e sucessivas direções editoriais (e conselhos de redacção) permeáveis a
interesses políticos e mercantis.
Veja-se, aliás, que na Global
Media chegámos a ter diretores editoriais do Diário de Notícias (Rosália
Amorim), Jornal de Notícias (Inês Cardoso) e TSF (Domingos de Andrade) no Conselho de Administração nos tempos de Marco Galinha. A
promiscuidade e cumplicidade começa aqui, quando jornalistas passam de
‘geradores de notícias’ credíveis – para que, trazendo público haja interesse
externo em anunciar – para gestores comerciais a vender banha da cobra, ainda
por cima usando estratégias capciosas para fazer com que marketing seja
perceptível como notícias baseadas em interesse editorial.
Aliás, a hipocrisia de
supostas virgens inocentes do jornalismo, que se comportaram como autênticas
megeras nos anos mais recentes, ficou bem patente na audição desta semana de
Domingos de Andrade na Assembleia da República.
Domingos de Andrade, durante a audição esta semana no Parlamento, foi administrador da Global Media durante três anos, mantendo-se jornalista e diretor editorial, e assinando contratos de prestação de serviços com entidades privadas e públicas, algumas das quais sob suspeita do Ministério Público.
Com a carteira profissional de
jornalista ativa, Domingos de Andrade assumiu durantes vários anos funções de
responsável editorial de diversos órgão de comunicação social da Global Media
(DN, JN e TSF), ao mesmo tempo que era administrador da holding –
sendo o braço direito executivo de Marco Galinha até ao ano passado –, e era
também, de acordo com o Portal da Transparência dos Media, gerente da TSF –
Rádio Jornal Lisboa, da TSF – Cooperativa Rádio Jornal do Algarve, da Difusão
de Ideias – Sociedade de Radiodifusão, da Pense Positivo – Radiodifusão e ainda
vogal do conselho de administração executivo da Rádio Notícias – Produções e
Publicidade.
Domingos de Andrade foi um
jornalista meigamente multado pela Comissão da Carteira Profissional de
Jornalista (CCPJ) em Janeiro do ano passado por ter andado a assinar contratos comerciais com empresas que
financiavam os periódicos da Global Media, e agora vem dizer que “não estamos
apenas a assistir ao fim de marcas, estamos a assistir à destruição
reputacional de marcas e redacções”? Está a fazer autocrítica ou está a fazer
lavagem de imagem?
Que eu saiba, “a destruição
reputacional de marcas e redacções” sucede quando se fica a saber, através de um despacho do Ministério Público, que “Eduardo
Vítor Rodrigues, na qualidade de autarca, solicitou a Domingos Portela de
Andrade, vogal do Conselho de Administração do Grupo Global Media, que os meios
de comunicação pertencentes a tal Grupo, nomeadamente o Jornal de Notícias e
TSF, elaborassem notícias e cobrissem conferências promovendo a atuação da
Câmara de Vila Nova de Gaia e do seu presidente”. É o jornalismo de Domingos de
Andrade que queremos que o Estado financie? É a credibilidade de Domingos de
Andrade que deve ser atendida quando falamos do fracasso da Global Media?
Rosália Amorim, durante a
audição esta semana no Parlamento, tornou-se conhecida pela constante promoção
e moderação de eventos pagos por empresas públicas e privadas ao Diário de
Notícias. Assumiu em novembro passado, o cargo de diretora da TSF, mesmo apesar
da oposição do Conselho de Redacção da rádio, que não a considerava capaz de
uma “política editorial independente”.
Quando vejo, por exemplo,
pessoas como Rosália Amorim, ex-diretora do Diário de Notícias, manifestar
“tristeza” pela situação da Global Media, sabendo como funcionavam as parcerias
comerciais naquele diário, estamos não apenas perante hipocrisia; há uma
desfaçatez terrível. Como pode uma “marca” ter alguma reputação se o próprio
Conselho de Redação da TSF se opôs à nomeação de Rosália Amorim – levantando “legítimas dúvidas quanto à sua real capacidade de manutenção de
uma política editorial independente” – e ela mesmo assim aceitou o cargo?
De facto, vivemos um momento
de clarificação.
Jornalismo mercantilista, sem
qualidade, com personagens munidos de carteira profissional de jornalistas, mas
de ética mais do que questionável, permeáveis ao poder político e ao poder
económico, que enganam os leitores e ouvintes através de contratos de prestação
de serviços que resultam em supostas notícias, entrevistas e eventos
independentes – esse jornalismo não pode sobreviver.
As empresas que o praticam,
não podem sobreviver. Não podem ser ajudadas pelo Estado. Além de tudo, é
imoral.
A ‘morte’ de projetos
jornalísticos baseados na falta de ética é mesmo bem-vinda – é mesmo essencial,
não apenas para que o crime não compense, não apenas para evitar o uso imoral
de impostos dos contribuintes para insuflar e alimentar procedimentos errados e
nefastos para uma sociedade, mas sobretudo por ser necessário dar espaço a projetos
credíveis e sem vícios, que provem que os leitores, perante a credibilidade,
valorizam economicamente o jornalismo.
Mais do que nunca, a
pluralidade e diversidade da comunicação social, essencial como alicerce da
defesa da democracia – que em Portugal está podre, em parte pelas
promiscuidades sustentadas por jornalistas (sobretudo diretores editoriais, os
tais que vão defender no próximo Congresso dos Jornalistas formas de
financiamento) com o poder político e económico – baseia-se na credibilidade de
projetos, e não na sua história.
O PÁGINA UM foi o primeiro órgão
de comunicação social a identificar Clement Ducasse como o beneficiário efetivo
do fundo das Bahamas que controla agora a Global Media, mas a Entidade
Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ainda não teve capacidade para saber
se este francês é um mero ‘testa de ferro’.
Quando o Jornal de Notícias e
o Diário de Notícias nasceram, nos idos do século XIX, existiam largas dezenas
de periódicos, alguns com largos anos, como o Açoriano Oriental, que ainda hoje
se mantém a caminhar para os 200 anos. Todos viram nascer outros, muitos, quase
todos foram ‘morrendo’, e sendo substituídos por outros, alguns tiveram várias
vidas até sucumbirem, independentemente de terem sido, em tempos, instituições
de prestígio, como os casos de O Século, o Comércio do Porto, a Capital, o
Diário Popular ou o Diário de Lisboa.
Os ‘cemitérios da imprensa’
estão cheios de jornais que nasceram cheios de esperança, alguns se mostraram
pujantes, mas por ‘causas naturais’, que incluíram sempre inadaptação ao
mercado ou a erros próprios, claudicaram. Mas a sua ‘morte’ nunca significou a
morte do jornalismo. Pelo contrário: na imprensa, a morte de um jornal permite
o nascimento de outros (ainda) sem vícios.
Os jornais (ou as rádios, ou
as televisões) morrem, mas o jornalismo não morre se extirparmos a tempo o mau
jornalismo. Se se persiste na manutenção de um mau produto, artificializando a
sua sobrevivência, ainda mais com dinheiros público, salvam-se a prazo (a curto
prazo) empregos, mas traça-se uma ameaça para a credibilidade de todo o
jornalismo, nega-se a possibilidade de nascerem outros projetos mais sérios,
mais credíveis… e mais economicamente viáveis.
Por isso, para mim – e sem
prejuízo de ser apoiante de um modelo de apoio social pelo Estado aos
desempregados de empresas falidas, incluindo as do sector dos media –, nada
mais saudável e natural do que a morte de (maus) órgãos de comunicação social,
até porque, ao fim e ao cabo, são apenas títulos – que, aliás, anos mais tarde
podem ser recuperados para novos projetos editoriais sérios.
José Paulo Fafe, CEO da Global
Media indicado pelo obscuro World Opportunity Fund, deixou a empresa gestora do
Tal&Qual em falência técnica e está agora no ‘olho do furacão’ da crise no
JN, DN e TSF.
[o próprio PÁGINA UM foi um
título inicialmente fundado em 1976 por Isabel do Carmo e Carlos Antunes, de ideologia de
extrema-esquerda de apoio a Otelo Saraiva de Carvalho; tornou-se mais tarde,
entre 1995 e 1997, um boletim informativo da Associação Académica da
Universidade do Minho, e antes de se tornar este jornal digital independente,
tomou o nome de um programa da católica Rádio Renascença… ou seja, nomes
leva-os o tempo, e simplesmente, no caso do PÁGINA UM, o aproveitámos por estar
disponível]
Quando Fernando Alves, um
histórico jornalista de rádio e fundador da TSF, afirma hoje no Público que “o departamento comercial comeu a cabeça de todas as redacções
que conheço”, não se refere apenas àquela rádio da Global Media nem a
outros órgãos de comunicação social deste grupo. Falará, mesmo que não queira
englobar, de praticamente todos os grupos de media que, à conta de uma crise
(que é muito de credibilidade), querem fazer-nos crer que os problemas são de
hoje e que se salvam com a prostituição do jornalismo (através de parcerias
comerciais) ou com dinheiros públicos.
O problema da Global Media – e também da Trust in News, que lhe vai seguir, em breve, as pisadas – não é de hoje. Uma empresa que desde 2017 soma prejuízos consecutivos, que já ultrapassavam os 42 milhões de euros em 2022, que tinha uma dívida ao Estado de 10 milhões no final desse ano (sem que o regulador soubesse), e que via os seus ativos imobiliários serem ‘chupados’ pelos acionistas, não pode vir agora carpir pela salvação com dinheiros públicos como se lhe tivesse sucedido um terramoto imprevisível. E o mesmo se diz em relação aos atuais e antigos responsáveis editoriais e jornalistas.
![]() |
Sede da Entidade Reguladora para a Comunicação Social: uma regulação que ‘anda a ver navios’ |
E também não se mostra
admissível que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social tenha uma
atitude de irresponsável passividade a ponto de defender, como fez há cerca de
dois meses em resposta a perguntas do PÁGINA UM, que não tem capacidade para sequer
pedir e analisar os relatórios e contas da Global Media.
O fraco papel do regulador,
mais a sua plataforma de Transparência dos Media, para evitar entrada de
empresas e pessoas com interesses suspeitos, seria anedótico se não fosse
grave. Foi o PÁGINA UM – e não o regulador – que detectou no ano passado falsas
declarações de diversas empresas de media, incluindo ocultação de dívidas ao
Estado (Global Media e Trust in News), de falência técnica (empresa do Tal & Qual) e de dependência financeira (empresa do Polígrafo).
Na verdade, tem sido o PÁGINA UM que, com as suas denúncias e já com uma secção (pela relevância num sistema democrático), mais tem revelado as promiscuidades entre jornalismo e empresas (públicas e privadas, e até Governo, o que, aliás, tem merecido a devida reação corporativista dos visados, razão pela qual a generalidade dos órgãos de comunicação social mainstream ignora as nossas investigações, e os ‘órgãos reguladores’ (ERC, CCPJ e Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas) se mostram tão favoráveis a atender os nossos críticos.
![]() |
Salvar empregos (e má imprensa) ou salvar o jornalismo, eis a questão |
Por tudo isto, e regressando
ao início, se vamos para “pactos de regime”, como defende Ana Sá Lopes, para
salvar empregos de más empresas jornalistas, fazendo com que passem a ser
controladas pelo Estado, não vejo como isso pode ser bom para a democracia –
diria antes: será péssimo para o jornalismo e para a democracia. Nacionalizar
empresas de media, ou entregá-las a empresas do regime, é o ‘sonho húmido’ de
quem está no poder. Não nos bastou as tentativas de Sócrates de controlar a TVI
e como foram nomeados alguns diretores da Lusa e da Global Media nos tempos do
seu Governo?
Por tudo isto, são uma ofensa
as palavras de Ana Sá Lopes – que é apenas um peão com o objetivo de colocar
uma clivagem ideológica num problema meramente empresarial e de ética
jornalística – a defender que quem contestar uma salvífica entrada de capitais
públicos (dinheiro dos contribuintes) especificamente na Global Media é alguém
de ‘direita’ a qualificar o Estado como um “diabo”, que é “mau, horrível, [que]
come criancinhas ao lanche e por aí fora”, como escreve no seu artigo de
opinião no Público de hoje.
Estou saturado deste tipo de
paleio, sobretudo por jornalistas, sobre um assunto que exige debate sério, e
sem estar contaminado por pessoas que compactuam ou compactuaram com um ‘modelo
de negócio’ da imprensa que descredibilizou o jornalismo português nos últimos
anos.
Melhor regulação – não
necessariamente mais (acho que a ERC dedicou mais horas de trabalho a analisar
queixas contra o PÁGINA UM do que a analisar a crescente e evidente degradação
da Global Media) –; maior participação e independência dos jornalistas nas
redacções; outra seriedade na anedótica Comissão da Carteira Profissional de
Jornalista (que deixa impune claríssimas incompatibilidades e promiscuidades);
e um debate sério sobre a definição de critérios apolíticos (sem intervenção
conjuntural dos Governos ou da Assembleia da República) para o financiamento
público dos media (por constituírem um bem público, na concepção económica do
termo), são temas fundamentais para definir o futuro da imprensa escrita (em
papel e online), radiofónica, televisiva e multimédia.
Mas esse debate deve ser feito
à margem do que está a suceder com a Global Media, que antecipa o caso similar
da Trust in News, dona da Visão. Aliás, por mim, seria saudável e até útil que
se discutisse o futuro da imprensa em Portugal depois da concretização da queda
destes dois grupos à força das leis do mercado, da oferta e da procura e da boa
gestão da res publica (dinheiros públicos), porquanto assim a
análise da sua ‘morte’ constituiria ensinamentos para não se cometerem os
mesmos erros e nos vermos livres de pessoas que conspurcam a nobre profissão de
jornalista.
Título e Texto: Pedro
Almeida Vieira, Página UM, 7-1-2024
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-