A primeira tarde portuguesa
A certidão de nascimento de
Portugal foi a Batalha de São Mamede, naquele dia em que, diz o povo, o filho
deu uma tareia na mãe
De lança em riste A pintura mural de Acácio Lino mostra bem a forma como se fazia guerra no século XII |
Luís Almeida Martins
A piada histórica predileta
dos portugueses é aquela com barbas: como é que o País havia de ter corrido
bem, se começou com um filho a bater na mãe? Mas há aqui dois equívocos. O
primeiro é que Portugal correu bem durante muito tempo (e esperemos que volte a
correr um dia destes); o segundo é que não houve nenhum filho a bater na mâe.
O filho a que a graçola se
refere é, como toda a gente sabe, D. Afonso Henriques, fundador da
nacionalidade e primeiro rei de Portugal; a mãe é Dona Teresa, filha ilegítima
de Afonso VI de Leão e Castela. Falta recordar a identidade do pai: tratava-se
do conde francês Henrique de Borgonha, aparentado com a famílçia real dos
Capetos, que tinha vindo para a Península Ibérica fazer cruzada contra os
mouros, ao serviço de D. Afonso VI. Este, que era irmão de uma tia por
afinidade do jovem Henrique, engraçou com ele e ofereceu-lhe a administração de
uma parte do seu reino – o Condado Portucalense, que abrangia o Minho, o Douro
Litoral e parte de Trás-os-Montes. E como se não bastasse, deu-lhe ainda a mão
da filha bastarda.
Quando Henriques, o borgonhês,
morreu, deixando nos braços da viúva o pequenito Afonso Henriques, Teresa
confiou o rebento à família do fidalgo duriense Egaz Moniz, para que o educasse,
e assumiu ela o governo do condado. Mas não a consideremos por isso uma mãe
desnaturada… Naquele tempo era normal os fidalgos serem educados por um aio.
D. Teresa ligou-se em seguida
aos barões da Galiza no combate contra as ambições hegemónicas de Castela. O
mais destacado desses barões era Fernão Peres de Trava, com quem ela se
envolveu sentimentalmente. Mas a aliança foi também política, chegando o galego
a governar os Condados de Portugal e Coimbra.
É natural que os barões
Entre-Douro-e-Minho – entre eles Egas Moniz – não tenham estado pelos ajustes.
Pegaram em armas (a bem dizer, naquele tempo nunca as largavam), transformaram
o jovem Afonso Henriques em seu estandarte de carne e osso e desafiaram para a
luta Fernão Peres e Teresa, que tinham o apoio do arcebispo de Santiago de
Compostela.
E, como não poderia deixar de
ser, travou-se uma batalha.
O pintor Acácio Lino concebeu
em 1922 um mural que intitulou A Primeira
Tarde Portuguesa e onde se vê os dois bandos de guerreiros enfrentando-se
de lanças na mão, não muito longe da silhueta de um castelo. A pintura
representa a batalha de São Mamede, que opôs as tais duas facções na tarde de
24 de junho de 1128, a norte do castelo de Guimarães, pertinho da cidade.
Mas porque se chamou a essa
batalha “a primeira tarde portuguesa”? Porque a vitória dos partidários de
Afonso Henriques – a maioria dos barões de Entre-Douro-e-Minho e o arcebispo de
Braga, D. Paio Mendes, cioso da sua independência face ao prelado compostealno –
abriu caminho à futura independência do País.
Derrotados, Teresa e Fernão
Peres deixaram o governo do condado nas mãos do jovem Afonso Henriques e dos
barões portucalenses. Reza a tradição, embora não existam provas documentais,
que Afonso mandou encerrar a mãe no castelo de Lanhoso, perto de Braga. Esta
lenda veio reforçar, se não mesmo construir, a ideia de que ele “batia na mãe”.
Mas não se tratava de bater como as pessoas normalmente julgam, mas antes de
fazer realpolitik, como agora é aliás moda…
Se Teresa e Fernão Peres
tivessem vencido em S. Mamede, o núcleo do Estado português continuaria a ser
governado pelo casal de amantes, ligados à Galiza. Portugal não se
autonomizaria, portanto.
Na lógica das comemorações
nacionais, faz algum sentido que o dia 24 de junho nunca tenha sido feriado? É
a data da independência portuguesa – se não oficial, pelo menos de facto.
Título e Texto: Luís Almeida
Martins, revista Visão, nº 981, 28-12-2011
Digitação e Edição: JP
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Túmulo de D. Afonso Henriques, Igreja Santa Clara, Coimbra. Foto: JP, 29-12-2011 |
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