domingo, 5 de outubro de 2014

Cabeças perdidas

Alberto Gonçalves

Se a grandeza de um país se medir pelo ridículo das polémicas que inventa, Portugal é enorme. O escândalo da semana prende-se com uma exposição de bustos dos presidentes da República no Parlamento. A inclusão dos chefes de Estado do Estado Novo levou o PCP a considerar a coisa "um enxovalho à democracia". Talvez mal habituado pelos belos traços faciais dos drs. Fazenda e Semedo, o Bloco considerou que o busto de Américo Tomás "não é só uma questão histórica, mas estética". E, do lado do PS, esse sofisticado portento que dá pelo nome de Jorge Lacão invocou o Bundestag e comparou o falecido almirante (e, presume-se, Carmona e Craveiro Lopes) a Hitler e a Mussolini.

Por mim, bastava o dr. Lacão se opor à exposição para justificar o respectivo desmantelamento em dez minutos. Infelizmente, a falta de bom senso levou a Comissão de Educação a uma reunião extraordinária que decidiu manter as cabeças de todos os presidentes incluindo as dos vis salazaristas. Trata-se, escusado dizer, de um erro e um desaforo.

Desde logo, porque os vis salazaristas eram nomeados por meia dúzia de serviçais do poder autoritário, ao contrário por exemplo dos grandes vultos da Primeira República, que eram nomeados por meia dúzia de serviçais do poder jacobino e virtuoso. Depois, porque a esquerda até demonstrou imenso espírito de abertura ao admitir o busto de Spínola, que foi escolhido à revelia do povo por interesses reaccionários, ao contrário por exemplo de Costa Gomes, que foi escolhido à revelia do povo por interesses progressistas. Por fim, porque ninguém levantou objecções à inclusão de Ramalho Eanes e Cavaco Silva, eleitos por massas alienadas, ao contrário de Soares e Sampaio, eleitos por massas esclarecidas.

É muito triste que as forças verdadeiramente democráticas, do PCP ao BE, passando pelo dr. Lacão, dediquem a carreira a lutar por vultos maiores da liberdade, de Estaline a Trotsky, passando pelo dr. Lacão, para nesta altura do regime serem obrigadas a conviver com a memória das marionetas do fascismo. O fascismo não pode ser esquecido, mas também não pode ser lembrado. É criminoso dizer que o fascismo nunca existiu, mas é criminoso agir como se tivesse existido. A memória colectiva é fundamental, mas é uma praga a aniquilar. Somos contra o branqueamento da ditadura, mas os bustos ostentam um inconcebível verdete. Os senhores deputados habitam a casa da democracia, mas muitos ganhariam em hospedar-se no manicómio.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 5-10-2014

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