Gabriel Mithá Ribeiro
O Presidente da República tem
gerido bem os seus momentos de ponderação e de silêncio para contrariar os
histerismos cínicos que fingem não dormir se a Presidência não se pronuncia a
toda a hora.
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Aníbal Cavaco Silva, Presidente da República Portuguesa |
São tão úteis ou tão nocivos
para a qualidade da vida coletiva os que ficam quietos e calados fingindo que o
que os rodeia não é nada com eles, quanto aqueles que não conseguem estar
quietos e calados e impedem que as instituições funcionem de modo regular.
Muito em particular as instituições de tutela e regulação da vida social, das
salas de aula das periferias suburbanas aos gabinetes ministeriais onde se
decidem os rumos do futuro coletivo. Do balanço entre uma e outra atitudes, os
equilíbrios felizmente alcançados pelas atuais democracias ocidentais correm
muitíssimos mais riscos, e riscos com consequências dificilmente reparáveis,
por pressão dos ativistas do que por responsabilidades dos que se limitam a
seguir rotinas quotidianas de gente comum.
A reforçarem-se as tendências
das décadas recentes – cujos sintomas são detetáveis da política às
universidades, da comunicação social às tendências que proliferam nas caixas de
comentários on-line –, é plausível que as nossas sociedades venham a ser bem
mais propensas a agitações sociais e problemáticas do que criativas,
inovadoras, responsáveis e geradoras de riqueza. Não é difícil supor para que
lado pende a racionalidade no funcionamento da vida social e a sustentabilidade
no tempo da eterna ambição de nos aproximarmos da justiça social.
Tornaram-se ainda
lugares-comuns apelos a novas ideias, novas interpretações, novos caminhos,
novas propostas, reformas sustentáveis, reinvenção do que existe. Mas tal só
será viável se sustentado num comprometimento social constante bem mais
orientado pela racionalidade e pela ponderação do que pela emotividade
normativa dos ativismos em voga. Isso porque o que é substantivamente inovador
nas sociedades do conhecimento resulta do trabalho persistente e consistente ao
longo do tempo. Sendo o que está a nascer sempre frágil, para sobreviver e
afirmar-se necessita de proteção inicial e tranquilidade suficiente para
existir e respirar, para se desenvolver com o tempo, para adquirir valor
social, para escapar ao infanticídio da crítica corrosiva, marca do nosso
tempo.
Seria provavelmente mais fácil
um indivíduo comum tornar-se Marx, Darwin, Freud ou Orwell em gerações passadas
do que hoje. Paradoxalmente, os atuais donos da crítica são os que mais se
queixam de que a atualidade não produz figuras intelectuais, sociais ou
políticas de referência.
A crítica pela crítica, a
crítica pré-formatada, a crítica que se limita ao jogo do contra “na hora”, a
crítica instintiva-emotiva-valorativa, a crítica “ad hominem”, a crítica enquanto
prato principal de qualquer refeição – aquilo que com bonomia se designa por
“crítica política” e que tem modelado atitudes sociais comuns desfavoráveis ao
funcionamento regular de diversas instituições, a começar pelas famílias e
pelas escolas – constitui o paroxismo da corrosão da reinvenção genuína do
sentido da vida social. Uma ideia de política cujo atributo chave seja a
constante visibilidade pública dos seus agentes é hoje um dos produtos tóxicos
das nossas sociedades.
E não é nem a política nem a
democracia em si que vão perdendo a nobreza e o lugar decisivo na
contemporaneidade. A perversão reside na normalidade com que as sociedades
toleram exibicionismos verborreicos dos seus agentes.
Neste mesmo sentido, nas
sociedades contemporâneas, como a portuguesa, a relação cultural difícil com o
silêncio tornou-se também crescentemente contraproducente. O silêncio foi
normativo em séculos de tradições religiosas e, num passado mais recente,
imposto às sociedades por décadas de ditaduras. Mas é tempo de exorcizarmos
essa herança. O caminho é o da legitimação social explícita de certas
instituições para voluntariamente, de acordo com a natureza da sua função,
integrem uma dimensão de ideologia do silêncio na sua cultura institucional que
se traduza no seu funcionamento quotidiano. O que importa é que esse silêncio
se identifique com a introspeção, o pensamento, a reflexão, o tempo necessário
à ponderação daqueles cujas ações e decisões condicionam a vida coletiva. Na
justiça, nas bibliotecas, nas salas de aula, nos hospitais, na vida cívica,
entre outros domínios.
Não é viável qualquer reforma
do sistema político em benefício da qualidade da vida coletiva que desconsidere
este assunto. Até porque, se existe uma dimensão de regressão civilizacional
nas décadas recentes condicionada pelo jogo político, deve-se mais a excessos
do que a ausências.
É tão problemática uma
sociedade (ou uma família, por exemplo) que massifique o silêncio, quanto uma
sociedade permissiva à massificação do ruído. Não é, portanto, o direito ao
ruído que está em causa. No espaço público felizmente que existem núcleos de
sobra monopolizados pelo ruído. A questão é que, descontadas as igrejas, fomos
deixando invadir pelo ruído espaços institucionais para os quais a gestão de
silêncios é fundamental, precisamente os espaços das instituições centrais que
tutelam e regulam a vida social, que modelam de forma massificada atitudes e
comportamentos comuns.
Estando as instituições
políticas no âmago desses processos, contra o lugar-comum de sentido contrário
(basta ver, ouvir ou ler a imprensa de hoje e de todos os dias), não tenho
dúvidas em considerar que o atual Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva,
tem sido das mais importantes figuras de referência (ou mesmo a mais importante)
de um ciclo político propenso a histerismos tão ruidosos quanto potencialmente
desastrosos a pretexto da crise.
Enquanto figura pública há
muito conhecida, talvez tenha sido mais fácil ao atual Presidente da República
gerir silêncios no intervalo em que não exerceu cargos políticos. Porém, no
âmago do sistema político, Cavaco Silva tem sido capaz de persistir e adaptar
ao cargo que ocupa uma postura hoje tão rara quanto socialmente saudável, até
para que cada um assuma as suas responsabilidades.
O Presidente da República poderia até ter
prolongado no tempo alguns dos seus momentos de ponderação e de silêncio para
contrariar ainda mais histerismos cínicos que fingem não dormir se a
Presidência não se pronuncia a toda a hora. Os mesmos que, à primeira
manifestação, mesmo a pretexto de uma mensagem de ano novo, marcam em cima tal
qual se marca um qualquer líder partidário, o último também ritual pacóvio por
ser vezes demais recorrente.
Melhor presidente da República
Portuguesa seria quase exigir o impossível em tempos em que as sociedades se deixaram colonizar por
verborreias e ativismos políticos estultamente democráticos.
Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Observador,
4-1-2015
Grifos: JP
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