sábado, 1 de agosto de 2015

Heróis e vilões

José António Saraiva
A esquerda, sendo por natureza utópica, tem necessidade de criar os seus heróis - e também de ter os seus vilões. Os maus da fita.

Os sonhos são muito bonitos a nível individual. Os sonhos colectivos, pelo contrário, acabam normalmente em tragédias. Foi o nazismo, foi o comunismo, foi o fascismo, foi o maoismo...

Agora, a principal bête noire da esquerda portuguesa (e europeia) é o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble. Ele é o culpado de tudo o que de mau acontece na Europa. Ele tem todos os defeitos: é azedo, zangado com o mundo, amargo, intratável, sinistro, etc. 

É certo que o atentado que o amarrou para toda a vida a uma cadeira de rodas pode ter feito dele um homem mais duro. Mas, em primeiro lugar, Schäuble não caiu do céu: ele representa hoje boa parte (senão a maior parte) da opinião pública alemã. Em segundo lugar, limitou-se a dizer uma coisa evidente: a Grécia não tem condições para estar no euro. No fundo, toda a gente sabe isso. Mas ninguém pode dizê-lo…

Os que criticam o ministro alemão já não se lembram provavelmente do que disseram de Angela Merkel até há muito pouco tempo. Merkel era a anterior bête noire da esquerda mundial - e até de pessoas moderadas do centro-direita. Ouvi Marcelo Rebelo de Sousa dizer com todas as letras que Merkel era «estúpida» pois estava a dar cabo do euro - quando a Alemanha era a principal beneficiária da moeda única.

Ora, é preciso algum pretensiosismo para dizer que uma mulher que chegou a chanceler alemã, e que já foi reeleita com uma vantagem folgada, é ‘estúpida’ e não sabe o que é melhor para o seu país.

No auge da contestação a Merkel, lembro-me de escrever que ela ainda haveria de ser reconhecida como a grande defensora do euro. Porquê? Porque defender o euro não é defender a ‘balda’, admitir tudo, deixar os países fazerem o que quiserem. Esse é o caminho mais directo para o fim do euro. Defender o euro é defender a disciplina orçamental, é exigir o cumprimento das regras, é dizer que os países têm de respeitar os seus compromissos, têm de cumprir os limites do défice, têm de pagar as suas dívidas, etc.

Os que defendem a ‘balda’, sob o bonito nome de ‘solidariedade’, não percebem que as suas ideias conduziriam a um beco sem saída - porque, mesmo que os vários líderes políticos europeus fossem permissivos em Bruxelas e aceitassem todas as infracções às regras do euro, os cidadãos dos países contribuintes líquidos acabariam por dizer um rotundo ‘não’ e poriam fim à festa. 

Curiosamente, muitos dos que há poucos meses atacavam Merkel defendem-na agora - pelo simples facto de que ela aparece em rota de colisão com Schäuble. A esquerda anda aos ziguezagues porque, no seu afã de endeusar este e diabolizar aquele, acaba muitas vezes por ter de mudar de opinião.

O fenómeno não é novo, mas tem-se repetido até hoje.

Ainda há três semanas, Alexis Tsipras era um herói para a esquerda. Ele ia mudar sozinho as regras da política europeia e instalar uma nova ordem em Bruxelas, fazendo vergar a Alemanha e todos os outros 17. Agora chamam-lhe nomes e acusam-no de traição. 

François Hollande foi outro dos heróis para a esquerda. Depositaram-se nele muitas esperanças. Em contraste com Sarkozy, do qual se dizia estar feito com Merkel, Hollande era o homem que ia obrigar a chanceler alemã a adoptar outra atitude. Mas Hollande foi a Berlim e no regresso mostrou que quem adoptara outra atitude fora ele próprio.

Antes de Hollande - e para o lugar dele - a esquerda francesa (e europeia) teve outro herói efémero: Dominique Strauss-Khan. Mas este perdeu-se num insólito assédio a uma criada de quarto e, embora os socialistas tenham tentado durante algum tempo segurá-lo, concluíram que não era possível e deixaram-no cair.

Antes disso, outro herói, este de estatura mundial, se prefigurou no horizonte da esquerda: Barack Obama. Era o primeiro Presidente negro da história dos EUA, era democrata, ia apagar do mapa os disparates de Bush. Mas depressa a esquerda se desiludiu, percebendo que não se muda a política externa de um país como os EUA como quem muda de camisa e por um exercício de vontade. E nem o facto de Obama ter introduzido uma reforma histórica no sistema de saúde foi suficiente para evitar a desilusão. A esquerda esperava muitíssimo mais dele. 

Já não falo para trás.
Nos líderes africanos que a esquerda endeusou, de Samora Machel a Kadhafi, autor do Livro Verde, que muitos esquerdistas de várias latitudes promoveram a grande pensador. Como é possível? Como é possível que muita gente pela Europa fora - um continente que teve enormes pensadores - se tenha deixado encantar por um charlatão, um tirano com um pensamento rudimentar?

Depois de tantas experiências falhadas, como é que a esquerda continua a acreditar em Dons Sebastiões? Para mim é um mistério. Depois de ter glorificado Lenine, Trotsky, Estaline, Krutchev, etc., na URSS, depois de ter depositado tantas expectativas em Mao, a Oriente, como se explica que ainda não tenha aprendido? 

Mas não aprendeu. Hoje em dia ainda há quem se curve perante uma figura absolutamente ridícula, anedótica, de chorar a rir, como o líder norte-coreano Kim Jong-il. 

A esquerda sempre foi assim e continuará a ser - porque, no momento em que deixasse de ser, em que assentasse os pés no chão e não fosse atrás de ilusões, deixaria de ser esquerda.

O que ainda alimenta a esquerda são estes heróis de pacotilha que dizem umas coisas bombásticas. ‘Agora é que é’ - pensam os incautos. ‘Este é que vai mudar tudo’. A esquerda, como qualquer adolescente, quer poder sonhar. Quer ouvir a voz daqueles que a fazem sonhar. Quer acreditar em fantasias como a Primavera Árabe ou a revolução grega.

A esquerda não quer ouvir a realidade porque quer poder viver num mundo ilusório. Mas, como já escrevi, os sonhos são muito bonitos a nível individual. Os sonhos colectivos, pelo contrário, acabam normalmente em tragédias. Foi o nazismo, foi o comunismo, foi o fascismo, foi o maoismo... Será que a esquerda nunca pensou nisto? 
Título e Texto: José António Saraiva, SOL, 31-7-2015

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