terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Sobre Soares

Alberto Gonçalves

Curiosamente, muitos dos que agradecem a Mário Soares a liberdade apreciam hoje a influência que notórios inimigos da liberdade exercem sobre o País

Entrevistei uma vez Mário Soares. Foi em 2006, durante a última campanha. Nesse mesmo dia, fora publicado um artigo não excessivamente laudatório que escrevi sobre o homem. Mal cheguei ao local da entrevista, o dr. Soares voltou-se para o sujeito que o acompanhava (talvez Vitor Ramalho) e, sem subtileza, perguntou baixinho se eu era o “tal”. Confirmada a identidade, aplicou-me uma ligeira rispidez. Ocasionalmente, distraía-se e tornava-se quase afável. Não conheci, pois, o dr. Soares colérico ou jovial de que rezam as lendas. Não conheci o dr. Soares, ponto.

Conto este irrelevantíssimo episódio apenas para cuprir os critérios mínimos aparentemente exigidos na hora da sua morte, momento aproveitado por incontáveis criaturas para exibirem intimidade com o falecido. De resto, não consigo integrar o coro de elogios incondicionais com que as criaturas nos brindaram. Pelos vistos, uma considerável percentagem dos meus compatriotas apenas respira, pensa, corre, dança e repete banalidades em público graças ao dr. Soares. Curiosamente, muitos dos que lhe agradecem a liberdade apreciam hoje a influência que notórios inimigos da liberdade exercem sobre o País.

Por outro lado, também não sei se percebo o puro ódio que o dr. Soares despertava em tanta gente (não, não é só o rancor de “retornados” e comunistas). Quando, ainda antes do óbito, o prof. Marcelo garantiu que “todos os portugueses” acompanhavam “com carinho a situação do dr. Soares”, o prof. Marcelo tipicamente acertou ao lado. Depois do óbito, pouco depois, os minutos de silêncio que precederam dois jogos de futebol viram-se interrompidos por abundantes insultos e assobios, espécie de contraponto aos louvores oficiosos. Em transmissões posteriores, as televisões baixaram prudentemente o som.

Sou incapaz de tamanhos fervores. Para mim, o dr. Soares não criou o mundo nem acabou com ele. É qualquer coisa no meio. Iniciou-se no estalinismo caseiro, mas combateu o salazarismo à revelia do PCP. Resistiu em 1975, ao avanço das forças antidemocráticas, mas ignoro se o fez por convicção ou por interesse. Entregou-nos, em dose dupla, ao FMI, mas aproximou-nos da “Europa”. Derrotou o prof. Freitas do Amaral, mas não tardou a reabilitá-lo junto com algum do pior entulho pátrio. Exerceu uma presidência ecuménica na superfície, mas conspiradora na essência. Ganhou fama de tolerante, mas cedeu a enormes baixezas para derrotar adversários ou descartar-se de compinchas incómodos. Mostrou uma grandeza natural, mas que frequentemente se confundia com prepotência. Isto no século XX, de que, à nossa ridícula escala, constituiu figura maior.

No século XXI, o dr. Soares limitou-se a passear devoção por ditadores e figuras particularmente sinistras, a sujeitar-se a enxovalhos eleitorais, a participar em encontros de alucinados contra a troika e um governo eleito, a visitar certos presidiários de Évora, a abominar o “neoliberalismo” e de facto os regimes ocidentais. Transformado num anacronismo “revolucionário”, o dr. Soares deixou de ser contraditório e, em suma, interessante. Passou os últimos anos a parecer negar-se a si mesmo. A História dirá se negou o suficiente. Ou se negou de todo.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Sábado, nº 663, 10 a 18 de janeiro de 2017

9 comentários:

  1. Visto assim, o Sr. Mario Soares era uma figura contraditória. Por um tempo, pregou idéias (ou seriam seus ideais) que a muitos agradaram, inclusive a nós, brasileiros. Pude ver aos noticiários do Brasil e sempre com comentários simpáticos ao Sr. Mario Soares. Mas percebo agora, e com outras informações que me chegaram, vejo que parte do povo português não sentia muita confiança em seus atos e ou palavras. Pena. Teve o poder em suas mãos e não soube utilizá-lo para contentamento dos portugueses. Como tantos outros em situação privilegiada que conhecemos.

    lp

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    1. Maravilha! Um(a) leitor(a) do Brasil se interessa por Mário Soares.
      Vou redigir uma complementação ao comentário de lp

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    2. Não acho que Mário Soares tenha pregado ideias (ou ideais), aliás, que ideias (ou ideais) pregou? Foi repetidor de ideias de outros, isso sim.

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    3. Os brasileiros, com certeza, estão mal informados sobre o que acontece não só em Portugal, mas também no mundo. Isto considerando as informações dos noticiários televisivos.

      Não só brasileiros, como portugueses, franceses, americanos… Durante muitos anos, nos séculos XIX e XX fomos, o comum dos mortais, bombardeados pela ‘verdade’ ou ‘narrativa’ da extrema-esquerda gramsciana. Até chegarmos ao ponto que… ser BICHA é o que tem que ser, ser NEGRO é ser vítima da opressão, ser MENOR bandido e filho-da-puta é ser coitadinho e etc… Nada demais pintarem esta figura da política portuguesa como, sei lá! aquilo que ele não foi!

      Não, definitivamente, esse homem não foi grande, pelo contrário, foi um reles político. Que se beneficiou, como outros tantos políticos, de uma imprensa capacho. (Vide o exemplo dos Estados Unidos da América: Obama, pode peidar, acontece, é deus; Trump, olha para quem peidou, é um FDP!)

      Sabe, na verdade, eu sou mais movido contra do que a favor. Explico melhor: se as últimas eleições americanas tivessem um embate normal, muito provavelmente eu passaria ao lado delas. Mas, quando me apercebi que não eram eleições ‘normais’ e que a imprensa arrogantemente tinha decido o ‘meu voto’, aí porra! escolhi o meu lado.

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  2. Caro Editor, de fato, desde que o mundo é mundo, o povo é massa de manobra. Acreditamos naquilo que querem que “seja a verdade”, nos impigem o que for mais conveniente. E, nos dias de hoje, com tantas facilidades e rapidez nas informações, ainda assim, homens comuns ou os que fazem história literalmente, são endeusados ou repudiados.
    Senti curiosidade em saber como os portugueses veem a figura pública do Sr. Mario Soares, pois assisti transmitido pela RTP1, o funeral do mesmo e um povo triste, acompanhando tudo e lamentando a sua morte. Quis saber se tudo aquilo era verdade. Agradeço o seu relato, comprovando que a visão deve ser sempre num ângulo de 360º.

    lp

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  3. * Correção: impingem

    lp

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  4. Por que foi tão pouca gente ao funeral de Soares?
    (…)
    “A desproporção entre a cerimónia oficial e a cobertura mediática, por um lado, e o número de pessoas na rua, por outro, foi tão gritante que Ferro Rodrigues veio justificar a falta de povo com o facto de ser “dia de trabalho” e de muitos estarem ali “em pensamento”. Mas quando os campeões europeus chegaram a Portugal a 11 de Julho também era dia de trabalho, e nem por isso o país deixou de sair à rua. “Hoje é feriado!”, proclamou Éder na Alameda. Não era. Mas parecia. Com Soares não se passou nada disso, e o argumento de que só o futebol faz mover multidões não colhe: o funeral de Cunhal, em 2005, foi acompanhado por um banho de gente, e as fotos da Avenida Morais Soares apinhada de bandeiras vermelhas impressionam. Como justificar este abismo na adesão popular?”
    (…)
    João Miguel Tavares, Público, 12-1-2017

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  5. Resposta a uma pergunta de João Miguel Tavares

    Rui Ramos

    Não sei se foi “pouca gente” ao funeral de Mário Soares. Mas o país oficial, ao antecipar uma manifestação popular que não era provável que acontecesse, criou essa impressão.

    João Miguel Tavares perguntou ontem “por que foi tão pouca gente ao funeral de Mário Soares?”, e respondeu falando da nossa dificuldade actual de gerar heróis consensuais, como os dos Lusíadas. É uma resposta interessante, mas creio que convinha distinguir aqui dois problemas.

    Comecemos pelo problema de engendrar semi-deuses. Não me pareça que tenha a ver com alguma especial abjecção da nossa vida colectiva contemporânea. É uma limitação característica de regimes pluralistas com liberdade de expressão, sobretudo em momentos de tensão política, como o actual. Em Inglaterra, o funeral de Estado de Margaret Thatcher, em 2013, provocou protestos e até contra-manifestações. Mário Soares, como Thatcher, sempre dividiu as opiniões, e nunca se deixou inibir por controvérsias. Protagonizou alguns dos maiores confrontos da fundação do regime, como a resistência ao militarismo comunista em 1975, ou a execução da austeridade do FMI em 1978 e em 1983. É verdade que passaram muitos anos. Mas Soares nunca desistiu de fazer política. Nunca foi um velho estadista na reforma. Nunca deixou que nos esquecêssemos dele. É compreensível, por isso, que ainda não seja uma lenda indiscutível. Isso não o diminui, pelo contrário. É antes outro sinal de uma relevância histórica que, como no caso de Thatcher, só a ignorância pode contestar.

    Parece-me, por isso, que o problema não é, nem Mário Soares, nem qualquer específica incompetência nossa para povoar panteões. “Por que foi tão pouca gente ao funeral de Mário Soares?”, pergunta João Miguel Tavares. Tentemos perceber como surgiu esta questão. Pela sede do PS, no Largo do Rato, e pelo mosteiro dos Jerónimos, passou, como seria de esperar, muita gente. Ao longo das ruas, também estiveram as pessoas que se poderia prever, sabendo-se que a morte de Mário Soares, aos 92 anos, não foi inesperada e trágica, como a de Francisco Sá Carneiro, nem a sua personalidade era objecto de culto de uma religião partidária, como Álvaro Cunhal. Mas o regime e a sua imprensa parecem ter tido outras expectativas. Foi essa talvez a origem da ideia de que houve “pouca gente”.

    O ponto é este: a suposta falta de gente só se notou devido ao empenho da oligarquia em anunciar uma grande manifestação popular, e à disponibilidade da comunicação social para simular essa manifestação, quando se percebeu que não ia acontecer. Foi então que os repórteres escolheram as palavras e as câmaras seleccionaram os ângulos a fim de manterem a ficção de um povo que teria abandonado em massa casas e empregos para encher as praças e as avenidas. Na época das redes sociais, tudo isso proporcionou a circulação de comentários e de imagens a demonstrar o contrário.

    A memória de Mário Soares não merecia estas mórbidas polémicas de 140 caracteres. Mas congregaram-se aqui dois interesses. Um era o da oligarquia política, de aproveitar a ocasião para se oferecer a si própria, num país dividido e inseguro, uma espécie de plebiscito de rua; o outro, era o dos jornais e das televisões, sempre ansiosos por alargar audiências através daquele tipo de emoções colectivas que costuma ser viral na internet.

    Não sei se houve ou não “pouca gente” no funeral de Mário Soares. Mas o país oficial, ao antecipar o que não era provável que acontecesse e ao ficcionar, depois, o que não aconteceu, provocou provavelmente essa impressão. Quem quisesse demonstrar o fosso crescente entre a oligarquia político-mediática, e o resto da população, teria aqui um exemplo. Lamenta-se muito a demagogia dos populistas. Mas a irrealidade dos que estão no poder e ocupam os ecrãs do regime não é menos corrosiva.

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  6. “Je Suis” Energúmeno(a)

    by Cristina Miranda

    Caro Miguel Sousa Tavares,

    Faço parte do grupo dos energúmenos do facebook e por isso, permita-me estas palavras:

    A Soares eu não devo nada. Porque o combate contra a ditadura foi conquista de todo um povo em luta, gentes de norte a sul, materializado pelos militares de Abril, enquanto Soares fazia alianças com Álvaro Cunhal em Paris, visitava Rússia para angariar donativos, e recebia de Kadafi. O combate contra a ditadura comunista foi obra de Salgado Zenha, Grã Bretanha, EUA e militares portugueses. Soares foi apenas o burguês no exílio a quem a Internacional Socialista chamava de “Kerensky Português” e que seu amigo Zenha deixou que brilhasse com os louros.


    Mas ele sim, deve-me e muito pelas 2 bancarrotas que nos trouxe miséria, pelas fundações para branquear donativos ao PS, a Fundação Mário Soares criada com dinheiro dos portugueses, o aberrante caso “fax de Macau”, pelo abandono dos retornados a quem deixou à sua triste sorte. Deve-me ética e moral na condução deste país, onde não faltou cunhas para o filho, marfins e diamantes, ajudas a corruptos, solidariedade vergonhosa a “Salgados”, “Sócrates”, “Craxis” e “Gonzalez”.

    A rede que tanto despreza, é o canal através do qual o povo se expressa depois de uma Constituição feita à medida, por Soares e Cunhal, lhe retirar o direito de o fazer no próprio Parlamento. Com toda a legitimidade.

    Vou continuar a mandar calar meus filhos, na hora dos seus comentários na SIC, porque gosto de si, sem deixar de fazer uso desta minha liberdade que Abril não conseguiu ainda dar pela totalidade, com a censura encapuzada na rede semeada ao serviço do establishment e que, não se deve a quem quis silenciar quem lhe fazia oposição. A quem nunca foi verdadeiramente democrata e que ainda hoje, fruto desse legado Soarista, impõe presença de meninos no cortejo fúnebre com cobertura tendenciosa irrealista como na Coreia do Norte ou Cuba.

    E se Soares se dirigiu como quis às grandes personalidades que partiram, porque haveria eu de ser diferente?

    Se ser energúmeno é não ter medo de não seguir as massas e chamar os bois pelos nomes, então, sim! “je suis energúmeno(a)” com todo o gosto.
    Cristina Miranda

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