terça-feira, 16 de maio de 2017

A fé dos ateus

João Pereira Coutinho

O que seria de nós sem Deus? A pergunta é antiga, a urgência é recente: no dia 11 de setembro de 2001, as Torres Gêmeas desabavam perante os olhos incrédulos do mundo. E entre os responsáveis pelo massacre, Deus também estava na lista. Se a religião não existisse, o fanatismo jamais teria voado até Nova Iorque. A religião destrói tudo. A história da religião é a história da desgraça humana.

Christopher Hitchens acredita que sim, em God Is Not Great. Esclarecimento: gosto de Hitchens e há vários anos que acompanho o bicho. Não é fácil: são duas dezenas de livros e incontáveis colunas para incontáveis publicações de elite (da New Statesman à Vanity Fair, da Slate ao TLS). Depois de Mencken e Gore Vidal, Hitchens tem a raríssima qualidade de conciliar profundidade teórica com um destrutivo e impressivo sentido de humor. Irresistível, não?

Sem dúvida. Irresistível, mas falível, sobretudo quando a profundidade não acompanha o humor. Acontece com God Is Not Great, que provoca riso e frustração em qualquer leitor informado. O riso está na iconoclastia de Hitchens (Maomé era epilético? Jesus morreu pelos pecados dos homens, mas ressuscitou ao terceiro dia?), uma iconoclastia que procura mostrar duas coisas: primeiro, que a existência de Deus é uma impossibilidade; e, segundo, que as religiões organizadas são uma malignidade. A frustração está na natureza pouco convincente dos argumentos.

Para Hitchens, a existência de Deus é uma impossibilidade pela razão bem simples de que foram os homens a criar o divino, e não o contrário. Basta olhar em volta: como conciliar a ideia de um criador perfeito com o estado imperfeito do mundo?

Na verdade, um mundo imperfeito não é incompatível com um criador perfeito se a liberdade humana é, simultaneamente, uma dádiva e um princípio de indeterminação. Se Hitchens tivesse lido Santo Agostinho, saberia disso. E sobre um Deus criado pela imaginação humana, a tese, que é uma repetição do trio maravilha (Feuerbach, Marx, Freud), não passa de uma profissão de fé, impossível de prova racional. Não é preciso ser crente para subscrever o truísmo: é impossível provar a existência, ou a inexistência, de Deus.

Verdade que o objetivo de Hitchens não é apenas esse. A existência de Deus é um pormenor quando existem homens que matam em Seu nome. Matam em Belfast. Em Beirute. Em Belgrado. Em Belém. Em Bagdá. E apenas para ficarmos pela letra ‘B’, como diz Hitchens com típico humor.

Infelizmente, e uma vez mais, o humor não basta. Não basta porque não é possível condenar toda a religião organizada tendo em conta as suas expressões mais extremas. Porque tudo pode ser perigoso quando levado ao extremo: a fé, a raça, a nação, o amor, o futebol, a estupidez. Além disso, os problemas que Hitchens traz na sua lista ‘B’ não são apenas explicáveis pela religião. Só um ingénuo acredita, por exemplo, que o problema israelo-palestiniano é uma contenda religiosa entre extremistas. A história, a política e as ideologias que sacudiram o Médio-Oriente (desde, pelo menos, a queda do Império Otomano) tiveram uma palavra maior.

Soluções? Para começar, Hitchens não aceita a objeção esperada de que os regimes que aboliram a religião acabaram por descer a níveis impensáveis de desumanidade. Desde logo porque, para o autor, esses regimes não aboliram a religião; apenas a transmutaram numa ideologia servida por capacidade tecnológica letal. Ainda que isto fosse verdade (não é), esse seria um argumento a favor da manutenção de uma religião tradicional (como Burke, no século XVIII, ou Tocqueville, no século XIX, ou Aron, já no século XX, sublinharam). A religião tradicional é conhecida. A transmutação gera o desconhecido.

Para terminar, Hitchens lança um convite para um novo ‘iluminismo’, capaz de dispensar a religião e alimentar a alma humana com arte e literatura. É uma boa proposta, sem dúvida, mas talvez fosse interessante saber que tipo de arte e literatura Hitchens aconselha aos novos iluminados. Razão simples: a história da arte no Ocidente é indissociável da herança judaico-cristã que a contaminou.

Eu, pessoalmente, só vejo um caminho: lançar na fogueira todas as obras que transportem resquícios religiosos.

Porque esse é o problema do panfleto de Hitchens: preocupado em derrubar a religião, o seu ateísmo converte-se numa nova forma de religião. Dogmática, intolerante. E, como em todos os extremismos, capaz de conceder a Deus uma importância de vida ou morte. Sobretudo a um Deus em que não se acredita. É a suprema ironia. 
Título e Texto: João Pereira Coutinho, Folha de S. Paulo, 21-7-2007, in ‘Avenida Paulista’, Edições Quasi, maio de 2008, páginas 107 e 108 
Digitação: JP 

Um comentário:

  1. CARACA, CHEIO DE ARGUMENTOS, MAS NÃO MOSTRA ONDE ESTÁ A FÉ DOS ATEUS.
    Eu não tenho fé nenhuma, podia dizer que acredito nas instituições, mas se elas apenas cumprissem as constituições, nem isso precisaríamos.
    Não existe dificuldade nenhuma em provar que deus não existe, difícil é comprovar sua existência.
    O próprio gênesis bíblico prova que Adão e Eva viveram cerca 5700 anos atrás, aproximadamente o ano judaico. A própria bíblia prova que havia outras tribos judaicas na época.
    No meu conceito são parábolas da época, a cobra, a maçã e o fratricídio.
    As igrejas são pródigas nas hipocrisias, se uma criança hoje disser que viu a virgem Maria, seria internada numa clínica.
    Quem pode provar que as as crianças de Fátima não mentiram, ou fizeram alguma arte?
    Eu jamais jogaria um livro, ou uma obra artística, religiosos que fossem numa fogueira.
    Essa a maior das heresias.

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