sexta-feira, 13 de abril de 2018

[Aparecido rasga o verbo] Tudo foi por sua causa

Aparecido Raimundo de Souza

TUDO FOI POR SUA CAUSA.  A saída repentina de casa, a briga com meus pais, o vazio que criou formas estranhas em redor de mim. Tudo foi por sua causa. O silêncio constrangedor, a saudade imensa, a solidão cruel, enfadonha, mesquinha, querendo esmagar, queimando pouco a pouco o corpo como brasa viva. Tudo foi por sua causa, tudo, até mesmo as palavras não ditas, pedaços de sonhos mal resolvidos, alçados à condição de quimeras sem futuro numa moldura ilógica.

Tudo foi por sua causa, e de repente me fiz estrada sinuosa por entre montanhas desconhecidas, rios e cachoeiras sombrias, florestas repletas de bichos e criaturas com visões de outros mundos. Passei por cidades enterradas, tudo por sua causa, topei crianças com sorrisos apagados – lembravam muito vivamente as que eu via na televisão tentando escapar de uma guerra desigual, flores malcuidadas, mulheres sem dentes, homens mutilados, velhinhos jogados ao deus dará, esperando à hora derradeira. E havia, também, criaturas morrendo à mingua, de fome e sede, e outras tantas em busca de destinos irreais.

Mas no fundo, no fundo tudo foi por sua causa. O fugir de mim, o me esconder dos medos mais bobos, me esquivar como um gato preto assustado, tudo, tudo, tudo foi por sua causa, um não sei o que girava como um enorme carrossel em obstinadas voltas, mas depois, muito depois, a sindrome do nada me vestiu com pedaços de pano pelo avesso. Ninguém me disse nada, mas eu sabia, desde o início, tudo foi por sua causa, ninguém me disse nada, ninguém me avisou de mim, mas era tanto voar, tanta amplidão, tanto marasmo, tanto contratempo contra o tempo, idas e voltas, vindas e idas, em derredor de um triângulo desenhado por mãos com dedos cheirando a desgraça.

Tudo foi por sua causa, inclusive estar me buscando, incansável, por alamedas sem fim, aprisionado num corpo de homem vencido, de olhar patético, entre angústias desconexas na amplidão de um mar em fúria. Tudo foi por sua causa. Seguir um curso sem rota adequada, porto indefinido, inventando fantasias que já nasciam constrangidas pelo fracasso. Era para ser diferente, a vida inteira, era para ser diferente, acredite, mas vim até aqui por sua causa, deixei para trás, na poeira, uma vida com os pés no chão, mas uma vida. Larguei por nada, um lar de alicerces humildes, mas um lar. Meus entes queridos, laços consanguíneos que nas horas de maior tristeza empurravam as melancolias incômodas para além-porta.

Foram esses olhos, seus olhos – que me tiraram a razão – e foi por eles que me fiz ao vento, sem pensamentos, sem lenço para soar o nariz, sem um níquel no bolso para tomar um café no primeiro bar que avistasse logo à frente. Foi esse rosto de pele macia, de calor à flor do pecado que me embrenhou por vales jamais conquistados, me feriu da ponta dos pés a raiz dos cabelos, em lanças pontiagudas, manuseando indecisões, uma após uma, a correr abrindo clarões no turvo amanhã que se descortinava tão sombrio como o passado indevassado.

Todavia, entre erros e acertos, existia um objetivo singular: tudo foi por sua causa. Mamãe beijando meu rosto, colhendo uma lágrima ao acaso na soleira da porta, a lâmpada queimada marcando presença num bocal enferrujado, papai na cadeira de balanço espiando, comprido, o céu muito azul e sem nuvens, meu quarto sombrio, a cama vazia, a janela fechada, o vidro de uma das venezianas quebrado, o cachorro latindo, eufórico, o telefone tocando, tocando, insistentemente, tudo, tudo, tudo mesmo, tudo por sua causa.

Meu Deus, em que lugar desse mundo, em qual canto ermo eu lhe deixei, em que albergue de segredos lhe escondi que agora não atino com o portal do esconderijo para acalmar minha impaciência? Tudo foi por sua causa. Tudo levava a você, tudo, aliás, ainda agora me leva a você, ao seu íntimo, ao seu amor. Tudo transpirava e transpira a sua presença, a sua satisfação pessoal, tudo, tudo era tudo foi por causa de você. O revólver, o dedo impaciente no gatilho mortal, o medo inadiável do nunca, entrelaçado num talvez sem razão, múltiplas espécies de receios inundando com a escuridão, um cantinho secreto onde jamais estive. O fim, o nunca mais, o vazio, flores sobre a terra enlameada, sangue, túmulos e cruzes, covas abertas, gavetões cheios de ossos, tudo era, tudo foi por sua causa. Até a morte, até o último estertor.

Mais que depressa bebi um cálice do amargo vinho. E transbordei o peito, em gritos parados no esgar da garganta. Ainda assim, e, sobretudo levarei comigo a convicção de que valeu o sacrifício empenhado: tudo, tudo era, enfim, tudo foi por sua causa. E por causa de você... me fiz estrela cadente no firmamento encantado do seu coração.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Sorocaba, interior de São Paulo. 13-4-2018

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