Alberto Gonçalves
“Dono de dois gatos e um coelho, quer pôr
as alterações climáticas no centro do debate.” Que significa isto? Que se fosse
dono de duas osgas e um periquito o Francisco daria atenção ao Médio Oriente?
Até domingo passado, eu nunca
prestara atenção ao PAN, que tomei por um epifenômeno idêntico àquele sr.
Sérgio dos reformados e às pulseiras do António Sala. Pelos vistos, 5,1% dos
eleitores prestaram a atenção suficiente para votar no partido das Pessoas, dos
Animais e da Natureza (na verdade, descontados os votos nulos, os votos em
branco e a abstenção, nem sequer 1,3% das pessoas – dos animais e da natureza
não sei – escolheram o PAN, do mesmo modo que a “grande vitória” do PS se deveu
a 8,2% do eleitorado, a “direita” do costume rondou os 7% e o imparável BE
parou nos 2,4%, mas esse é outro assunto).
Sempre ávido de participar nas
últimas tendências, comprei um polo verde acinzentado e li detalhados artigos
sobre o eurodeputado do PAN e sobre o PAN. O eurodeputado chama-se (um momento,
que estou a procurar o nome… andava algures… cá está!) Francisco Guerreiro, é
vegan e tem dois gatos e um coelho. Aliás, “O eurodeputado vegan tem dois gatos
e um coelho” é exatamente o título do artigo que o “Expresso” dedica ao rapaz.
Não é um título particularmente informativo, a menos que consideremos informativos
os títulos “O vereador sportinguista tem uma espondilose e quatro sobrinhos”,
ou “O anestesista marreco tem um ‘time-sharing’ e o bacalhau de molho”. Enfim,
jornalismo moderno.
E a modernidade jornalística
prossegue quando se tenta explicar o impacto da fauna (a propósito, é coerente
que um defensor dos animais e da natureza detenha a propriedade de bichos – e
de arbustos, já agora?) do Francisco nas respectivas convicções: “Dono de dois
gatos e um coelho, quer pôr as alterações climáticas no centro do debate.” O
que significa isto? Que se fosse dono de cinco percevejos e três rinocerontes,
as aflições do Francisco divergiriam para o conflito no Médio Oriente? E que se
mantivesse em cativeiro duas osgas e um periquito o Francisco perderia o sono a
pensar no drama da Huawei?
O retrato do Francisco não
termina aqui. O Francisco é coerente. O Francisco tem um carro que só usa
“quando não tem alternativa”, leia-se para “ir buscar a filha à escola” ou
“calcorrear o país”, leia-se sempre que lhe dá jeito, leia-se à semelhança de
toda a gente: eu também dispenso o carro para atravessar a rua – sou
ambientalista e não sabia. O Francisco, que “tentará pagar um extra para
compensar a pegada ecológica”, viajará de avião de e para Bruxelas “quase todas
as semanas”, leia-se porque deixa cá a família para, cito, não a prejudicar,
leia-se agirá de acordo com as suas conveniências, leia-se à semelhança de toda
a gente: exceto os bandalhos que não “tentam” pagar “um extra” para “compensar”
a “pegada ecológica”. O Francisco procura comprar roupa “apenas quando
precisa”, “e geralmente em segunda mão”. O Francisco “recolhe lixo nos tempos
livres”. O Francisco é uma joia de moço, ou no mínimo convenceu-se disso. E
esse é o problema.
Não há mal nenhum em que o
Francisco se vista com roupa usada, apanhe lixo, coma relva, acarinhe
chinchilas, utilize hipocritamente os transportes poluentes e, se assim o
entender, saia à varanda em cuecas (herdadas do avô) para acumular água da
chuva em tigelinhas recicláveis. O mal é o Francisco julgar que o seu
comportamento é tão espetacular que constitui um exemplo a seguir pela
humanidade em peso. Antes do PAN, o dilúvio. Depois do PAN, um cartaz da
campanha traduz a modéstia do candidato e da candidatura: “Vamos sentar o
planeta no Parlamento Europeu”. Do alto dos inúmeros delírios, o Francisco
imagina mesmo que representa a Terra e não 168 mil alminhas.
E quem diz o Francisco diz o
PAN em geral, cujas crenças, no sentido religioso do termo, não mereceriam
comentário se assumidamente se limitassem aos membros e simpatizantes da seita.
Sucede que não limitam. O PAN é livre de abominar os transgénicos e os
respectivos benefícios. O PAN é livre de presumir que as “medicinas
alternativas” são uma coisa autêntica e não uma impostura do gabarito da
tarologia. O PAN é livre de preferir curar a enxaqueca com camomila no lugar de
Zomig. O PAN é livre de trocar proteínas animais por alcachofras e tofu. O PAN
é livre de não apreciar sacos de plástico e carregar as compras na cabeça. O
PAN é livre de sentir cócegas com os combustíveis fósseis. O PAN é livre de
acreditar nos méritos, e na viabilidade, de providenciar um salário aos que
recusam trabalhar. O PAN é livre de ponderar a saída do euro. O PAN é livre de
sonhar com o indicador da Felicidade Interna Bruta. O PAN é livre de, sob o
verniz “urbano” e fofinho, ser bruto como as casas.
A chatice, e o perigo, é que o
PAN não se satisfaz em passear ignorância sem um remoto vínculo à realidade. O
PAN, que é para a ciência (e para a economia) o que o BE é para a economia (e
para a ciência) quer, e aos poucos tem ajudado a conseguir, que a ignorância, a
crendice e a superstição cheguem à lei. O PAN devia ser livre de tudo, não
devia ser livre de interferir na liberdade alheia através de alucinações. A
última palavra ao Francisco: “O nosso caderno de encargos é muito exigente”. De
facto, exige uma imensa propensão para o atraso de vida.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
1-6-2019
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