sexta-feira, 8 de maio de 2020

[Aparecido rasga o verbo] A coleira do cão

Aparecido Raimundo de Souza

JESUS CRISTO ESTAVA muitíssimo preocupado com as drogas em todo mundo. Sabia que essas desgraças (a cada dia que passava) vinham se alastrando de  forma irrefreável, notadamente entre as crianças, os jovens e os adolescentes. O Martir do Gólgota resolveu, em caráter de urgência, reunir alguns de seus principais apóstolos numa das  mansões celestiais existentes perto de onde morava o Pai Maior, e tentar achar, junto com eles, uma solução plausível para pôr um fim definitivo a essas pandemias que levavam os incautos e menos desavisados em números cada vez mais crescentes para os descaminhos do inferno. Assim foi.

Depois de uma hora, terminada a reunião, ficou decidido que cada apóstolo desceria à Terra e voltaria, dentro do menor tempo possível trazendo as substâncias nocivas que fossem encontradas nos lugares tidos como pontos chaves de distribuição. Como as drogas, não têm pátria nem nacionalidade...  O reencontro se daria  uma semana depois,  no mesmo lugar. Jesus Cristo, com a sua graça intensíssima e a bondade transbordando da alma, iria pessoalmente receber cada um dos seus emissários, abrindo lhes, pessoalmente, a porta. De fato, uma  semana depois, por volta das sete horas da manhã, os enviados começaram o processo de regresso.

“Toc, toc”.
Jesus Cristo, como prometido, atendeu imediatamente.
— Quem e?
— Simão, o Zelote, Amado Mestre.
Simão foi recebido de braços abertos:
— Seja bem vindo. O que você trouxe, Simão?
— Senhor, arrebatei toda a cocaína da Bolívia.
— Pode entrar, Simão. Tem café, leite, suco, pão, bolo, frutas, queijo e mortadela. Os anjos Baraquiel e Gabriel estão logo ali, à sua disposição. Sinta-se em casa.

Bateram à porta, de novo:
“Toc, toc”.
— Quem e?
— André, Senhor.
Jesus repetiu o mesmo gesto endereçado à Simão:
— Seja bem vindo, André. O que você trouxe?
— Meu Salvador, eu juntei toda a maconha,  haxixe, e  LSD dos Estados Unidos.
— Entre, André. Que bom! Vá até a mesa e fale com Baraquiel e Gabriel. Mandei preparar um dejejum reforçado para todos.

O terceiro se aproximou:
“Toc, toc”.
— Quem e?
— Jesus, aqui é Tiago, filho de Zebedeu.
— Seja bem vindo, meu filho. O que você trouxe?
— Amado Mestre, trouxe todo o ópio do Afeganistão.
— Estou muito feliz com seu regresso. Junte-se a Simão e André.

Logo em seguida bateu João, irmão de Tiago:
“Toc, toc”.
Jesus repetiu a pergunta feita aos que já se encontram à mesa:
— Quem e?
— João, Senhor.
— Entre João. Seja como os demais, bem vindo. O que você trouxe?
— Trouxe todo o ecstasy de Honduras, meu Senhor e Rei.
— Ótimo. Perfeito! Junte-se a  Tiago, seu irmão.

O próximo a se fazer presente, Filipe:
“Toc, toc”.
— Quem é?
— Filipe,  meu Salvador.
— Filipe, que bom vê-lo de volta.  O que trouxe?
— Trouxe, meu Mestre querido toda a morfina que encontrei na Jamaica.
— Perfeito. Entre, meu amado. Uma mesa farta  e,  no capricho, espera por você.

Os discipulos continuaram chegando a pequenos intervalos de cinco ou seis minutos entre um e outro:
“Toc, toc”.
— Quem é?
— Bartolomeu, Senhor do Universo.
— Que prezer inusitado em poder abraça-lo, Bartomoleu. Diga o que trouxe e sente-se para o café da manhã.
— Meu senhor, eu trouxe todos os cigarros do Paraguai. O que tinha de contrabando!...
— Formidável, Bartolomeu, formidável. Agora, sem mais delongas,  acabe de chegar, acomode-se e cuide da sua fome.

Toc, toc”
— Quem bateu agora?
— Tomé, Senhor.
— Seja bem vindo. Receba a minha paz e a minha benção. Tomé, como se saiu em sua missão?
— Muito bem, Senhor. Trouxe todas as colas de sapateiros que encontrei na República Dominicana. De lambuja, aproveitei e passei a mão recolhendo os tonéis de álcool que  por lá existiam. Não ficou um sequer, para contar história.
— Acredito piamente em você, Tomé.  Não sabe como me alegra o espírito em ouvir isso vindo de sua pessoa  Agora vá comer. Deve estar faminto.

Outros discípulos continuavam chegando e bondosamente, com o coração em festa e uma luz incandescente nos olhos, Jesus seguia em pé, na porta de acesso, recebendo seus escolhidos, e dando a eles as boas vindas pela missão levada à contento e, sobretudo, pelo dever cumprido em face da incumbência que cada um recebera. Foi a vez do outro Tiago, filho de  Alfeu:
Toc, toc”.
— Quem bate agora?
— Tiago, meu Rei, Tiago filho de Alfeu.
— Que satisfação grandiosa em tê-o de volta. Diga sem mais delongas: o que você trouxe, Tiago?
— Meu Inimitável e Soberano, passei os dez dedos em todas as anfetaminas que encontrei no Equador. Todas. Fiz uma limpa.
— Excelente, maravilhoso, Tiago. Vá se sentar e participar das guloseimas  sobre à bancada.  Os demais do nosso grupo aguardam ansiosos.

“Toc, toc”.
Desta vez, quem deu o ar da graça, Mateus:
— Quem é?
— Mateus, Senhor.
— Seja bem vindo, Mateus. Seja bem vindo. Então, o que você trouxe?
— Senhor, trouxe todas as pedras de crack que encontrei na Costa Rica.
— Estou feliz com todos vocês. Por favor, Mateus, vá se sentar e  tirar a barriga da miséria. O breakfast está imperdível.

Chegou, então, a derradeira criatura escolhida da falange do Nazareno. Judas Iscariotes. O sujeito bateu devagar, sem muito empenho. Precisou que o fizesse repetidas vezes, para que, enfim, o Redentor o escutasse.
“Toc, toc”,
O Leão de Judá, incansável, o rosto sereno e tranquilo, indagou, pressuroso:
— Quem é?
— Judas Iscariotes...
— Judas, Judas, meu filho amado! Que bom que voltou. O que trouxe?
Num primeiro momento o recém chegado nada respondeu.
— Jesus Cristo refez a pergunta:
— Judas Iscariotes, meu filho querido, o que você trouxe?

Como o discípulo continuasse mudo, Jesus escancarou a entrada em toda a sua largura. À frente de seu rosto terno, o Príncipe da Paz, o Bispo das nossas almas deu com uma muralha de homens encapuzados, todos com armas de grosso calibre nas mãos o que, num momento  o deixou intrigado. Apesar de saber de quem se tratavam e o que pretendiam, Jesus Cristo refez a pergunta:
— Judas Iscariotes, o que você trouxe?
— Senhor —,  começou Judas com a sua voz se incorporando  num ser desprezível, de feições frias, os dentes manchados de nicotina,  a barba de mais de uma semana  —,  como pode perceber,  com esses  olhos que o pó do universo haverá de turvar —, estive passeando pelo Brasil, ou melhor, por Brasília. E concluiu, com excrescência e um sorriso chalaceado: — De  lá, eu trouxe a polícia federal em peso, para prender todo mundo que se encontra aqui.
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha,  Espírito Santo. 8-5-2020

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