O combate ao vírus não tem sido
democrático: não trata todos por igual e distingue povo e elites. A Covid-19
também veio lembrar que Portugal é muito menos livre, justo e democrático do
que pensa ser
Alexandre Homem Cristo
1 O campeonato de futebol retomou ontem e continuará nas
próximas semanas com estádios vazios — apesar de ser ao ar livre, as
autoridades de saúde consideram que há risco de criar focos de contágio. Há
dias, e muito bem, também retomaram os espetáculos em sala fechada e, no Campo Pequeno, houve mais de duas mil pessoas na plateia. A dúvida que fica no ar é
esta: se é possível haver milhares de pessoas dentro de uma sala de espetáculos,
o que impede que milhares de pessoas assistam ao futebol num estádio?
2 A máscara no parlamento, ao início, não era para ser usada
— Ferro Rodrigues recusou-se a que as comemorações do 25 de Abril fossem uma
festa de mascarados. Depois, passou a ser obrigatório usar máscara, exceto
quando se discursava. Ainda depois, a obrigatoriedade estendeu-se aos discursos
— o uso de máscara seria incondicional. Por fim, orientações de há dois dias
vieram explicar que, afinal, não é preciso usar máscara na Assembleia da
República, exceto em casos em que, discursando, não se consegue garantir as
distâncias de segurança. A desorientação soa a caricatura, mas tem uma fácil
explicação: desde o início, o parlamento adotou sempre regras excepcionais, à
medida do conforto dos deputados e substancialmente diferentes das que foram
atribuídas às empresas e locais de trabalho em espaços fechados.
3 Enquanto vigorou Estado de Emergência, as comemorações do
25 de Abril e do 1º de Maio foram caracterizadas por grandes ajuntamentos de
pessoas — num contexto em que era proibido a alguém estar na rua com dois
amigos. As autoridades esforçaram-se por justificar esse excepcionalismo,
viabilizado legalmente pelo Presidente da República e apaixonadamente defendido
em discurso na Assembleia da República.
O mesmo Marcelo que, depois,
tratou de se distanciar das comemorações da CGTP/ PCP e, agora em situação de
desconfinamento, organiza as comemorações de 10 de Junho com apenas 8
participantes, criticando duramente as opções de parlamento e CGTP/ PCP — sim,
as opções que anteriormente havia defendido e dado enquadramento legal. Se a
incoerência quanto ao cumprimento das regras sanitárias é inequívoca, não
sobram dúvidas sobre a coerência das práticas: o poder político fará sempre o
que quiser, defenderá uma coisa e o seu contrário, e terá sempre razão.
4 Marcelo criticou a imprudência dos jovens que, nesta fase
de desconfinamento, têm organizado festas e convívios nas quais se quebram as
regras de segurança sanitária. Tem razão. Mas como criticar esses jovens,
compreensivelmente sedentos de interação social, quando grandes festivais e
ajuntamentos, como a festa do Avante, são permitidos devido à sua natureza
política? Afinal, se o que separa a segurança da insegurança é um cartão de
militante, as regras deixam de o ser.
A lista de incongruências
quanto às regras sanitárias é longa e estende-se a várias áreas, dos
transportes às praias. E, individualmente, cada um destes casos já foi
amplamente analisado e comentado — seja nas contradições políticas ou na
ausência de uma comunicação clara e eficaz das autoridades de saúde. Nada de
novo? Não é bem assim.
O que falta dizer é que, no
seu conjunto, essas situações desenham um retrato de Portugal que em nada nos
lisonjeia: um país onde as regras só existem para o povo e as excepções se
aplicam sistematicamente às elites. O uso de máscara é obrigatório para
trabalhadores nas empresas, mas dispensável para deputados. As aglomerações são
proibidas aos cidadãos, mas incentivadas nos contextos políticos. Os mais
populares festivais de Verão são forçados ao cancelamento, mas os festivais de
Verão partidários mantêm-se. Os eventos culturais de elite realizam-se em salas
com plateias compostas, os eventos culturais e desportivos de maior interesse
popular não podem ter público.
Ao contrário do que se tem
debatido, não importa determinar se o vírus é ou não democrático, se atinge
mais os ricos ou se vítima mais os pobres. Importa, sim, sublinhar que o
combate ao vírus não tem sido democrático, porque não trata todos por igual.
Este é um facto objetivo: as distinções que separam pobres e ricos, povo e
elites, vêm das próprias autoridades, que determinam as regras e, logo a
seguir, desenham as exceções à medida da força dos grupos de influência.
Eis um país onde o estatuto
social e o acesso ao poder ainda definem liberdades e garantias.
Depois de expor as desigualdades
sociais, econômicas e educativas da população, a Covid-19 também veio lembrar
que Portugal é muito menos livre, justo e democrático do que pensa ser.
Título e Texto: Alexandre
Homem Cristo, Observador,
4-6-2020, 0h09
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