terça-feira, 6 de outubro de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Sem as cores da vida

Aparecido Raimundo de Souza 

EU VINHA PELA orla, caminhando pela areia, quando dei de cara com uma moça mascarada, parada, em pé, completamente estática na beira da água.  A linda (ai pela casa dos vinte e oito), espiava atentamente o mar. Fazia isto em silêncio, como se trocasse, com ele, alguma coisa importante, num diálogo que ninguém ao seu redor pudesse ouvir. 

A jovem se mantinha reta. Apenas os pés jaziam mergulhados nas ondas de espumas brancas que iam e vinham numa rotina sem fim. Pensei com meus botões: ‘por que ela não entra?!’. Bastava tirar os óculos escuros, a máscara rosa que lhe ocultava parte do rosto, a saída de praia, os chinelos e  gozar do bem bom da natureza. 

Apenas isto, num ritual ligeiro e, em seguida, dar dois ou três passos à frente e, então, desfrutaria da maviosidade daquele momento único que o oceano imenso oferecia, de graça, sem cobrar ou pedir nada em troca. Por breves momentos, me quedei, a observar, quieto. De longe, sem me aproximar. Capturei a figura esguia de um rapaz que, à retaguarda, a vigiava, de solslaio,  enquanto acertava duas cadeiras e tentava abrir um guarda sol. 

De repente, ele largou tudo e se posicionou em direção a ela. Na mão, de contrapeso, vinha uma bengala branca (dessas usadas pelas pessoas que nasceram privadas da visão). Ao se acercar da beldade, ele lhe estendeu o amparo e o braço  direito.  Ato contínuo, de posse do bastão de arrimo, ela experimentou, bem devagar, sondando o terreno, tateando aqui e ali. 

Se dedicava vagarosamente a estes gestos, a procura, certamente, de um ponto de apoio, para começar a andar, além de poder contar com o conforto do braço e da presença do rapaz que a escoltava. Percebi, num segundo, toda a situação. Não adiantava ela tirar a máscara, ou se despir dos óculos.

Ela não conseguiria ver o mar, ou o dia lindo, mormente os cuidados do acompanhante, sobretudo, se deleitar, se inebriar com a formosura que enchia meus olhos, ao tempo em que, literalmente, privava os dela, de usufluírem da grandeza que a natureza, naquele momento sublime, fazia descortinar diante de sua endeusada silhueta. 

Apesar da sua juventude transpirando por todos os poros e, igualmente, da beleza ímpar que a sua feminilidade proporcionava a quem mais passasse e resolvesse estancar os passos e olhar para ela.  Olhar por um segundo que fosse, não com os olhos físicos; todavia; com a visão vinda de dentro da alma. 

Ainda assim, nada desfiguraria o quadro. Se mudasse, obviamente quem a contemplasse, como eu, se compadeceria da sua dor descomedida e choraria, interiormente, em face da sua atribulada desdita.  

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Sertãozinho, Ribeirão Preto,  interior de São Paulo, 6-10-2020 

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