domingo, 14 de novembro de 2010

A forma das coisas que vêm

Em Portugal, o estado de esgotamento do regime democrático vai seguramente dificultar soluções sistémicas que assegurem o melhor funcionamento possível das instituições, indispensável em 2011 para o cumprimento dos objectivos que as circunstâncias nos impõem. Isto é perceptível a vários níveis: no enfraquecimento da soberania nacional, na confirmada debilidade institucional, no descrédito da política e numa incipiente fractura social que não augura nada de bom.
Maria José Nogueira Pinto
A possibilidade de a alternativa a Sócrates e de o seu governo saírem do próprio Partido Socialista é duvidosa. Não porque os socialistas não avaliem os danos emergentes desta governação na credibilidade do partido e no delapidar do seu património ético e ideológico, mas porque no PS, tal como nos partidos em geral, a democraticidade interna funciona mal e se houve coisa que Sócrates conseguiu foi implantar a sua clientela em toda a máquina do Estado. Contudo, nas actuais circunstâncias, mudar a liderança e o Governo sem recurso a eleições podia ser um ganho.
Há quem contraponha a este cenário o de eleições antecipadas seguidas de um megabloco que incluiria o PS, o PSD e o CDS-PP, isolando os comunistas e a extrema esquerda. Diz-se que só uma base parlamentar com esta amplitude sustentará a duríssima execução das medidas orçamentais e dos prováveis PEC que se seguirão. Num registo de normalidade, que já não é o nosso, talvez esta leitura fizesse sentido, mas hoje avoluma-se a percepção generalizada - justa ou injusta - de que a democracia se transformou numa partidocracia entrincheirada na defesa das suas prerrogativas e benesses. E que campanha, que progra- ma eleitoral, que discurso podiam unir estas três forças num momento em que não há nada para dar a ninguém?
Resta a possibilidade de um governo de "Salvação Nacional" de iniciativa presidencial, uma espécie de task force, tecnicamente excelente, política quanto baste e sem base partidária, composta por pessoas competentes e de reconhecido mérito de direita e de esquerda, não associáveis aos erros e omissões da governação mais recente, sem terem de ir a votos, fazer promessas inúteis ou desgastar-se na barganha eleitoral. Uma espécie de FMI português, capaz de nos apertar o cinto até ao último furo sem estrangular o nosso orgulho nacional. Também esta via parece improvável porque o Presidente da República - qualquer um - tem de esgotar as outras fórmulas antes de poder adoptar esta, a qual também só poderá funcionar com uma base parlamentar sólida.

A "política" com que o giro político e a produção mediática se entretêm, e que tem consistido na construção e desconstrução constante de cenários, atingiu já o nível de um thriller. Só que agora não bastam cenários que arrumem ou desarrumem as hostes em parada e é preciso perceber o efeito que começam a produzir no cidadão comum perplexo, indignado, angustiado. É sabido que as formas e fórmulas da democracia - um regime que é apenas o menos mau - são sempre postas à prova em momentos de crise e frequentemente sem êxito. O estado anémico do nosso regime só pode, pois, ser altamente preocupante a par de uma sociedade civil pouco resiliente e onde o número de vítimas cresce diariamente.
As formas das coisas que hão- -de vir parecem-me assustadoras. Os portugueses, na sua maioria alheados da política após mais de três décadas de democracia, acordam agora para uma dura realidade que dificilmente percebem e aceitam; generaliza-se o discurso da diabolização dos políticos, tratados como uma categoria homogénea de oportunistas e ladrões, discurso demagogicamente alimentado por muitas vozes irresponsáveis; as instituições são vistas como territórios tomados de assalto por parasitas; as grandes fortunas, lícitas ou ilícitas, surgem como a origem de muitos males e associadas, através de todo o tipo de corrupção, aos próprios órgãos de soberania.
É preciso manter a esperança, sem dúvida. Mas para que ela frutifique é preciso, antes, ser lúcido quanto às formas do que há-de vir.
Maria José Nogueira Pinto, Diário de Notícias, 11-11-2010

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