O ano de 2011 começa com uma certeza: o Brasil mudou. E agora é para valer. A passagem de Luiz Inácio da Silva pela presidência da República refundou as raízes nacionais.
A prova inconteste deste fato está numa decisão anunciada pela Petrobras no apagar das luzes de 2010: o campo de Tupi, na bacia de Santos, passa a se chamar campo de Lula.
Justa homenagem. Afinal, quem são os índios Tupi diante do novo descobridor do Brasil?
Se índio ainda quer apito, vai ficar querendo. Na história oficial, quem apita agora é o messias do ABC.
A simbologia nacional entra, por assim dizer, na era da desinibição. A homenagem que varreu os índios Tupi para uma camada inferior ao pré-sal partiu de uma estatal comandada pelo homenageado.
Em outras palavras: Lula deu a Lula o que é de Lula – ou, pelo menos, que ele acha que é. Chega de falsa modéstia.
Pensando bem, o filho do Brasil está sendo humilde. Ele poderia, por exemplo, ter rebatizado o Banco do Brasil de Banco do Lula – o que não seria nenhum abuso, considerando toda verba que saiu dali para os cofres do PT, sob sua regência.
Chega também dessa história de esperar o sujeito morrer para botar seu nome nas placas. Se Lula já é praticamente um santo em vida (te cuida, São Bernardo do Campo), permita-se que ele assista à sua própria eternização.
A única dúvida é sobre como o ex-presidente chamará o ex-campo de Tupi: “campo de Lula”, ou “meu campo”? É esperar para ver. Será mais um momento histórico da apoteose sindical, daqueles em que o ex-operário diz que seu ego “não está cabendo dentro da calça”, e, infalivelmente, chora.
Em sua última viagem como presidente a Pernambuco, Lula chorou três vezes. Também, pudera. Estava em sua terra natal, diante de uma multidão arrebanhada com anúncios na TV pagos pelo contribuinte. É mesmo de chorar.
É o conto de fadas do presidente pobre e bondoso, o Jesus Cristo de Garanhuns, incensado pelos reis magos do marketing. Uma saga que pode até não ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro, mas haverá de levar o prêmio de efeitos especiais.
Steven Spielberg é um aprendiz diante da tecnologia lulista. Um projeto de poder que aterrissou em Brasília sem lenço e sem documento, trazendo apenas, além da fome por cargos, o Fome Zero – idéia revolucionária que morreu de inanição antes do primeiro prato.
Mas o ministério do ilusionismo era bom, e operou o milagre. Botou Lula sentado na mesa posta por Fernando Henrique, jogou água no feijão da estabilidade econômica e ainda convenceu a freguesia de que o neoliberalismo deixara as panelas vazias.
Foi a herança maldita mais saborosa da história.
Em entrevista ao “Manhattan Connection”, Fernando Henrique arriscou dizer que quem mudou o Brasil foi ele, não Lula. Tarde demais, prezado sociólogo. O mito do filho do Brasil chegou até o pré-sal das consciências. Os que vieram antes de Lula, hoje, não passam de uns Tupis.
Na USP, na PUC, no Ipea, na FGV borbulham estudos altamente criativos, cada um tentando provar mais do que o outro como o ano da graça de 2003 fundou o Brasil feliz.
Não adianta trombetear que o poder de compra do pobre é filho do Plano Real. Que plano foi esse mesmo?
Não adianta gritar que não haveria Bolsa Família se a economia nacional não tivesse sido resgatada do pântano, a duras penas, no final do século XX. Se é que existiu o século XX.
Quando o Brasil mostrou solidez financeira na crise de 2008, Lula chegou a se ufanar da tecnologia de reestruturação dos bancos. Ou seja, até o torpedeado Proer foi anexado pelo messias.
Diante disso, realmente, tomar posse do campo de Tupi é um detalhe.
Na virada para a era Dilma, os reis magos do governo sumiram com 20 bilhões de reais do livro-caixa, para fazer a gastança caber na meta de superávit primário – criada pelos Tupis pré-históricos. A lenda não pode morrer.
Feliz ano velho.
Guilherme Fiuza, Revista Época, 29-12-2010
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