Meu primeiro contato com a
novidade foi numa fila de caixa bancário — longa, estacionária e
contrariadamente silenciosa, ou silenciosamente contrariada. Até que alguém
atrás de mim começou a falar sozinho. Naquela época, falar sozinho indicava sempre uma pessoa que tem um parafuso a
menos, ficou gagá, pirou, fugiu do hospício, ficou louco de pedra, lunático,
etc. Naquela situação, portanto, a sabedoria popular me aconselhava a
precaver-me. Aos poucos consegui virar-me para trás discretamente, até ver de
esguelha o personagem, cujo solilóquio
caminhava mais ou menos assim:
— A fila está grande, acho que
vai demorar uns 20 minutos … Não, eu daqui vou para o escritório … Se você sair
agora, vai chegar a tempo …
Eram frases razoavelmente
sensatas, o que me tranquilizou um pouco. Prestando mais atenção, notei um fio
saindo da orelha dele e prosseguindo até o bolso do paletó (ainda se usava
paletó naquela época distante). Daí concluí que havia lá dentro um aparelho
captando o som de longe e transmitindo-o para o ouvido do soliloquente, e
vice-versa. Nem preciso dizer-lhe agora que se tratava de um primitivo celular.
Nesta nossa época em que as
atitudes mais disparatadas, absurdas e repelentes tornaram-se habituais, quase
nada mais é o que parece (não estou me referindo a máquinas), e falar sozinho
nem sempre indica um pirado. Mas naquela época uma pessoa precavida exigia
explicação lógica para qualquer coisa estranha que aparecesse. Embora esteja no
mais generalizado desuso, o costume de examinar tudo de acordo com a lógica
ainda me acompanha. Quando ouço alguém “falando sozinho”, ainda tenho sustos
como aquele. Já nem me viro para conferir, pois quase todo mundo soliloquiza o
tempo todo. Mas continuo vendo relações disso com estar pirado.
Estou fazendo um esforço
hercúleo para não afirmar que você também fala sozinho, e acho até necessário
explicar-me, pois pretendo hoje esbordoar o celular e seus respectivos
usuários. Não o faço levianamente, sem motivo, pois um dos mais graves
resultados do uso de celular e seus correlatos é que prometeram facilitar a
comunicação com “um milhão de amigos”, mas estão eliminando a comunicação com
os amigos. Os solilóquios se generalizaram, e mesmo entre amigos sempre há
alguns que desligam e entram em órbita lunar (tornam-se lunáticos) ou se deixam
comandar pela nuvem (tornam-se nefelibatas). Conversam então com desconhecidos
“amigos” virtuais a grande distância. Sintoma evidente da falta de um ou mais
parafusos.
Como eu nunca usei e nunca vou
usar celular nem qualquer dos seus correlatos, sejam eles smart (inteligentes —
eles, não os usuários) ou burros (vice-versa), nunca percebi o prazer que possa
existir em tratar como amigo um ente imaginário. Muito menos em trocar amigos
presentes por esses ilustres desconhecidos ausentes. Minha prevenção contra
esses brinquedinhos magnificamente prejudiciais e brilhantemente dispensáveis
vem de longe, desde que foram lançados.
(Esse sujeito é maluco. Julga
dispensável o celular!…)

Sobre o pescoço — eis aí uma
alusão que logo estará ultrapassada, pois está se generalizando mais uma
consequência do uso desses brinquedinhos de comunicação. Os aficionados, na
maioria jovens, estão ficando corcundas
(não é erro de digitação). E a causa evidente é a posição inclinada da cabeça
enquanto cutucam ou acariciam esses objetos, nas suas prolongadas fugas da
realidade. Ficam corcundas, pois a cabeça deveria estar sobre o pescoço, mas
eles a deixam pendurada no pescoço.
Deve faltar pelo menos um
parafuso na cabeça desse pessoal que fala sozinho. Estou até pensando em lançar
no mercado um tipo de parafuso especial, capaz de sanar essa deficiência; e
terá também a função de fixar a cabeça na posição correta, fazendo dele um
parafuso descorcovante, além de anti-solilóquio. Não sei por quê, mas o meu
parafuso deve ter alguma semelhança com flechas.
Pelo que dizem psicólogos e
ortopedistas na imprensa, o número de corcundas soliloquentes já é grande, e
está em crescimento vertiginoso. Isto significa que o mercado para o meu
parafuso é muito promissor.
Título e Texto: Jacinto Flecha, ABIM,
31-05-2014
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