João César das Neves
Portugal começou este século da mesma forma que o
anterior: em decadência. Há mais de 15 anos que vimos sucessivamente a
enfraquecer, sem perspectivas de retoma. Em termos demográficos, económicos,
financeiros, sociais, políticos e culturais, Portugal vai ficando menor. Na
dolorosa trajectória de queda, de vez em quando passamos um novo marco do
declínio. O último cartaz do PS assinala a descida de um degrau adicional de
abjeção.
O slogan "em defesa da escola pública" não
é propriamente original. Aliás limita-se a glosar palavras de ordem anteriores
de alguns partidos e movimentos extremistas ou corporativos. Apesar disso, ver
o Partido Socialista afinar por esse diapasão constitui um grau inesperado de
infâmia. Tal hipocrisia não é habitual nas forças democráticas portuguesas. Uma
coisa é ler isto em grupos minoritários, que nos habituaram às atoardas mais
boçais. Aliás, na boca deles nem sequer chega a ser hipocrisia, de tal modo a
sua mundividência distorce a realidade. Mas a mesma frase sob o símbolo de um
dos pilares do regime revela o ponto de degradação a que chegámos.
O PS sabe perfeitamente que a escola pública não
está a ser atacada, não sofre qualquer ameaça à sua existência e prosperidade,
nem precisa de defensores alvoroçados. Se é essa a preocupação, pode ficar
descansado, sem incorrer em despesas publicitárias para declarar motivo tão
meritório quanto pacífico.
Mas todos sabem que esse não é o problema. É
verdade que existe uma parte do sistema escolar nacional a necessitar de
urgente defesa, mas aí o agressor é o governo do PS. Quando o seu Ministério da
Educação está empenhado na maior campanha das últimas décadas contra a escola
livre e a possibilidade de escolha de pais e alunos, falar em defesa da escola
pública é supina impostura. O agressor mascara-se de protector de inocentes
para esconder a sua barbaridade. Hitler também fingiu proteger os Sudetas para
atacar a Checoslováquia e invocou a defesa dos alemães em Dantzig como pretexto
de invasão da Polónia. Claro que o PS é uma força digna e civilizada, sem
qualquer semelhança com os nazis. Por isso choca vê-lo embrulhado nos mesmos
estratagemas. O senhor ministro não está a defender a escola pública; limita-se
a estragar a outra. No final a educação nacional fica mais pobre, as crianças
menos defendidas, o país mais desorientado.
Este é apenas um caso pontual, mas tem a clara
vantagem de explicitar bem as origens da decadência lusitana. Porque esta,
desde 1383, é sempre causada pela mesma doença, a esclerose dos interesses.
Alguns grupos capturam o propósito nacional e exploram-no a seu favor. Foi
assim com os nobres medievais, os interesses coloniais, a burguesia liberal, as
corporações salazaristas. É quando se perde de vista o país para defender o
umbigo que Portugal decai. Mas em poucas circunstâncias vemos este vício tão
assumidamente proclamado como neste cartaz.
Note-se que a finalidade do partido, do governo,
do Ministério da Educação é a escola. Não é a educação, não são as crianças,
não é o futuro do país, mas a escola. O aparelho sobrepõe-se ao propósito, o
mecanismo é mais importante do que o serviço. E a escola que o PS quer defender
não é a escola de qualidade, não é a escola livre, não é a escola participada,
mas a escola pública. O que interessa é o imenso organismo de funcionários que
se alimenta, independentemente do público que devia servir.
Não é fácil encontrar ocasiões em que a máscara
caia tão flagrantemente, para revelar à evidência, com comovente candura e
desavergonhado desplante, a mais descarada perversão da função estatal. Temos o
poder governamental ao serviço de um grupinho particular. Só faltava o símbolo
da Fenprof para a proclamação ficar completa.
Esta é a grande vantagem do actual governo: já nem
esconde a decadência. O seu programa é a simples sobrevivência, e o meio usado
passa pela vassalagem aos barões. Não se lhe conhece nenhum programa
estratégico, uma visão abrangente, uma linha de rumo positivo. Nem sequer um
diagnóstico sério da situação. Limita-se a identificar as forças dominantes,
prometendo-lhes as benesses adequadas.
Por outro lado, a atitude manifesta que a
decadência está a chegar às últimas fases. Vimos algo semelhante no segundo
governo Balsemão em 1981 e no segundo governo Sócrates em 2009. É a situação
desesperada que faz perder a vergonha, revelando, debaixo do forro, o rude
maquinismo. Depois destes governos de recurso e de desespero costuma aparecer a
mudança. Seja para o progresso ou para o caos.
Título e Texto: João César das Neves, Diário de Notícias, 8-9-2016
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