Helena Matos
Já se comparou a polémica que rodeia a
morte de militares durante a instrução com o silêncio que acompanha as mortes
súbitas de desportistas?
Após a morte dos candidatos a
comandos começou uma sequência de declarações, desmentidos e novas declarações
que dão conta de como é cada vez mais difícil justificar a instituição militar,
como esta divide os partidos que apoiam o Governo e como, em consequência
disso, a extinção dos Comandos chegou a ser ponderada.
Escrevo que a extinção dos
Comandos chegou a ser ponderada não por Catarina Martins ter vindo
pressurosamente exigi-la. É óbvio que o fez e fará sempre, pois para o BE os militares
devem ser ou uma milícia ou uma ONG, sendo que para mais os Comandos têm aquele
senão de oficialmente terem derrotado a esquerda radical no 25 de Novembro de
1975. (Não desmerecendo no valor dos Comandos, em Novembro de 1975 não foi
apenas Jaime Neves quem veio para a rua, também houve, à esquerda, quem ficasse
em casa, como Otelo, ou quem não deixasse os seus homens sair, caso de Rosa
Coutinho. Afinal, em Novembro de 75, depois de ter feito o que queria em África
e de garantir em Lisboa os cargos institucionais e administrativos que por
largos anos lhe dariam uma influência que nenhum desaire eleitoral abalaria –
qualquer semelhança com os tempos presentes não é coincidência – o PCP já não
precisava da extrema-esquerda para nada.)
Mas, e voltando ao facto de a
extinção dos Comandos ter sido quase decidida, se aos considerandos de Catarina
Martins juntarmos as declarações do porta-voz do Exército anunciando que todas
as hipóteses estavam “em cima da mesa” a propósito da suspensão dos cursos de
Comandos, percebemos que a líder do BE não falou no vazio. Houve ainda uma
fonte oficial do Ministério da Defesa respondendo ao Expresso, quando
questionada sobre o fim dos Comandos: “Está tudo em aberto”. Para finalizar, o
Presidente da República, por inerência Comandante Supremo das Forças Armadas,
achou apropriado ao seu cargo declarar que “será apurado tudo até às últimas
consequências”. O português é de facto uma língua traiçoeira e a expressão “até
às últimas consequências” não é neutra de modo algum. Note-se que o PR não
falou de causas. Falou sim de consequências e só de consequências, num momento
em que, acreditávamos nós, se procuravam apurar as causas. Que consequências
eram essas?
Entretanto, a roda livre das
palavras inverteu o sentido e agora todos, à excepção do BE, garantem que os
Comandos não vão ser extintos. Em resumo, extinguir os Comandos chegou a ser
ponderado mas essa extinção era ceder demasiado ao BE, que tem manifestado um
interesse constante pelo que se passa nos quartéis e já saíra triunfante do
caso do Colégio Militar, em que, recorde-se, Marcelo Rebelo de Sousa aceitou,
como se isso fosse um mero acto administrativo, o pedido de demissão do Chefe
do Estado-Maior do Exército, general Carlos Jerónimo.
Por agora, a não ser que uma
nova declaração ou facto alterem substancialmente as circunstâncias, os
Comandos continuarão a existir. Mas eles em particular e a instituição militar
no seu todo são uma espécie de corpo estranho, pois à força de se se confundir
paz com pacifismo (nada mais perigoso) acabámos sem perceber para que servem os
militares. E não, este não é um problema que decorra de termos radicais no
Governo. Claro que sempre que se fazem alianças com radicais tem de se lhes
entregar sectores em que estes, dando asas à fúria inquisitorial que os anima,
acabem a ganhar espaço: a polémica em torno dos colégios com contratos de
associação é um bom exemplo dessa espécie de fatalidade. Mas a incompreensão em
torno dos militares é muito mais profunda. Claro que um destes dias o PAN pode
entrar em transe quando ouvir o grito “Mama Sume” dos Comandos, que era também
o grito que se fazia ouvir aos jovens Bantu aquando da caça ao leão. E,
naturalmente, uma qualquer comissão de género partirá, se tiver luz verde para
tal, numa cruzada histérica por causa das referências às namoradas nos hinos
militares. Mas, para lá deste folclore, as sucessivas fantasias que alimentamos
sobre as forças armadas dão conta de algo que se chamaria decadência caso
fossemos capazes de chamar as coisas pelos nomes.
Tivemos a fase das forças
armadas enquanto barbudos distribuidores de flores. O resultado foi mais ou
menos o caos e a institucionalização da violência. Mas ficámos com belas
fotografias. Depois as flores ficaram para as floristas, as barbas para os
barbeiros e os militares voltaram aos quartéis. Anos depois, extinguia-se o
serviço militar obrigatório – rapar o cabelo e fazer flexões estava ao nível da
tortura! – e apostava-se na excelência das forças especiais. Tudo foi feito ao
sabor das modas e dos votos: agora que a Europa se debate com o fanatismo de
milhares de jovens, questiona-se em países como a França a reintrodução do
serviço militar obrigatório, não para que os recrutas combatam os terroristas,
mas sim para que a ida à tropa faça aos jovens fanatizados aquilo que fez
outrora a milhares de mancebos – integrá-los. Afinal, se do ponto de vista
militar o serviço militar obrigatório não é hoje muito interessante há que ter
em conta que quando se fecharam os quartéis se fechou também a instituição mais
transversal da sociedade.
Mas voltemos à extinção do
serviço militar obrigatório. Dava-se então como inquestionável que poderiam e
deveriam existir forças especiais. Espantosamente (ou talvez não) dessas forças
especiais tínhamos como actuações mediatica e publicamente aceitáveis os
desfiles e as missões de paz. Sendo que por missões de paz se entendiam
invariavelmente duas coisas: cozinhar bacalhau com couves no Natal, estivessem
e estejam os militares onde estiverem, e a distribuição agora não de flores mas
sim de medicamentos e comida.
Após o 11 de Setembro, passou
a admitir-se que as tropas especiais (nunca as nossas, mas sim as de outros
países) poderiam fazer outro tipo de operações além das reservadas à Cruz
Vermelha. Chegou até a fantasiar-se que bastaria usar tropas especiais para
assegurar a paz no mundo (Como bem se vê no caso da Síria, este tipo de
intervenção poupa os militares, poupa os governos mas está longe de poupar os
civis). A estas fantasias sobre a natureza e o impacto das operações feitas
unicamente por tropas especiais veio juntar-se, em países como Portugal, a
particularidade de ser cada vez mais difícil compatibilizar o funcionamento, a
hierarquia e os valores das forças armadas, sejam elas constituídas por tropas especiais
ou não, com sociedades em que os jovens apenas podem receber ordens se
estiverem num programa de talentos culinários. Já a avaliação está reservada
aos concursos televisivos. As vicissitudes do clima só as podem enfrentar nos
festivais de verão. Desastres e acidentes resultantes do esforço físico só se
toleram (e calam) caso os jovens sejam praticantes de um qualquer desporto, de
preferência rentável ou medalhável. Já se comparou a polémica que rodeia a
morte de militares com o silêncio que acompanha as mortes súbitas de
desportistas?
Parece-me óbvio que aquilo que
aconteceu neste curso de Comandos tem de ser investigado e corrigido o que
tiver de ser corrigido. Mas por trás desta polémica o que temos é o resultado
do populismo com que ao longo de anos se tem tratado a instituição militar.
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
11-9-2016
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