Maria João Avillez
Mas se um dia, por causa do estado do
país, da agonia do ocidente ou da inquietante saúde do mundo, for preciso
inverter a marcha e mudar de vida, onde ir buscar o discernimento, o ânimo,
para actuar?
1. Fala-se por aí em
apatia, letargia, acomodamento, mas em todo o caso, oh quão alegre. Há muito
que não me lembro de tanta leveza, quase me apetece dizer “viva tão deslizante
felicidade!” Não há preocupações, nem aflicções, não há sombras, nem nuvens,
céu limpo, horizonte aberto, bom passadio. Folgada, a vida flui, por entre
enganos e equívocos mas que importância se há palpitação, felicidade e
“estabilidade”? Enfeitada por de um número astronómicas de automóveis nas ruas,
movida, estreias, acontecimentos de “prestígio”, festivais, fama, Portugal na
moda. É óbvio que também usufruo de uma cidade que embora desmazelada está mais
cosmopolita e sedutora mas o ponto não é porém esse. É a pouca sustentabilidade
de vida assim folgada. E nesse sentido vida impossível mas acreditada e
praticada como realidade possível: haverá maior irrealidade (e maior
desresponsabilização) do que viver com o dinheiro dos outros como se fosse
nosso (ou fruto de produção nossa?). Estranhamente é como se o amanhã não fosse
connosco, logo se verá. Ou como se não tivéssemos que deixar herança sólida e o
futuro – o futuro do país, o da comunidade, o dos nossos – nada importasse. Ou
nada significasse ao pé desta onda tão envolvente de facilidades e afectos –
traiçoeira até mais não, claro está – produzida, lembremo-lo, pelos timoneiros
políticos deste país das maravilhas. Com a viva simpatia com que se evocam
“direitos” e a pouca queda com que se cumprem deveres (e responsabilidades e
obrigações), como resistir ao suave balanço da onda?
2. O dinheiro parece
que circula (mas não é nosso) os sindicatos hibernaram, ou fazem de conta; não
há greves, nem manifestações, nem paralisações, exit ameaças e chantagens. As
chatices foram riscadas da ordem do dia e não é verdade que até há a tão
cantada “estabilidade”? Descobrir alguém que queira trocar este encantador
estado de coisas por vida mais responsabilizada é descobrir agulha em palheiro.
3. A “estabilidade” é sui
generis, bem entendido. Lembra-me sempre aqueles algodões de açúcar das
feiras que parecem resistentes e de repente se desfazem mas faz um jeitão de
engana-tolos ao Executivo, que a exibe como um troféu. (enquanto sabiamente
“faz horas” para a trocar por modelo mais gerível e digerível, mesmo que diga
que não). Enquanto isto, sobre a tal “estabilidade” caiem também as benções do
alto, Deus livre Belém de confrontos ou desfechos que exijam ruptura ou
fractura. Com o seu verbo compulsivo e aquela alegria demasiado constante, o
Presidente prefere ser bonzinho com os portugueses.
E folgazão. (E propósito de
folguedos recorde-se – é uma pura questão biográfica – o luxo e o capricho de,
à nossa custa e com essa excitação juvenil algo embaraçante, atravessar um
oceano para tirar uma foto tropical com um homem indecente ou o diálogo
igualmente juvenil mas inexplicável num Chefe de Estado, travado com a Rainha
de Inglaterra). Sim, como há-de este estado de permanente “divertissement” tão
estimado popularmente pôr alguma vez em causa a “estabilidade” deles? E no
entanto…
4. Há um ano, íamos ter
crescimento económico à base de doses maciças de “consumo”, uma previsão
fantasiosa que nada justificava nem escorava e rematou em rotundo fracasso.
Agora aí esta um Orçamento de Estado mais ou menos baseado no (falso) maná das
receitas extraordinárias e na armadilha dos “ses”: “se a Economia arrancar”,
“se houver investimento”… não se vislumbrando porém razão ou fundamento para
uma coisa e outra (mas o inferno está cheio de boas suposições). Julgo porém
que mais que estarmos apenas perante mais um orçamento – sempre discutível por
natureza e ainda bem – estamos perante um sistema, um viver, uma situação, uma
circunstância, que todos os dias vende um pouco mais do futuro.
5. Há um ano a
qualidade politica dos governantes, impolutos patriotas, estava assegurada:
eram patriotas impolutos. Afinal mentem por causa de licenciaturas, bilhetes de
avião, convites indevidos; mentem também sobre o governo anterior, tecendo uma
falsíssima narrativa “oficial” de coisas que não houve e algarismos que nunca
existiram. Escondem o que dizem aqui ter dito em Bruxelas, e o que em Bruxelas
dizem ter dito aqui. (A verdade é uma maçada, de facto.)
6. Há um ano a
severidade “punitiva” da linguagem do anterior governo iria dar lugar a uma
retórica promissora e luminosa mas o que temos hoje é o uso comum de uma
extraordinária oralidade governamental, feita em permanência de chistes
agressivos, insultos pessoais, chacotas rascas, má fé, numa espécie de
persecutório circuito fechado. Exagero? É só ouvir, repara-se logo. Não lembro,
em mais de quatro décadas, de comportamentos políticos assim. Assim tão
escancaradamente desqualificados. Mas atroadoramente felizes, sim. Tão felizes
que os factos, apesar de reais, concretos, verificáveis, são de imediato
negados e substituídos por convenientes ficções, geralmente acompanhadas de
maus modos e maus vinhos. Das exportações brandidas como êxito exclusivo sem
nunca as relacionar com o turismo, até aos juros da divida, passando pelo
assassínio da Caixa ou pela “fluidez” com que se fazem contas e se usam (e
abusam) algarismos, estatísticas e outros números é um ver se te avias. Sempre
devidamente abençoado.
7. Que poucos se
incomodem com o que acima expus, não é novidade: sei que destoo horrivelmente
da pintura rosa e se até Carlos Moedas ou Miguel Frasquilho assinam de cruz, o
erro só pode ser meu. Além de que, é bem verdade, a vida é bela, há mais
estrelas Michellin, houve a Web Summit, Lisboa e o Porto fervilham, está aí o
Natal e o subsídio, quem sabe férias a crédito em Cancun ou talvez Cuba (um
“sítio” agora surpreendentemente legitimada por Belém).
Mas se um dia, por causa do
estado do país, da agonia do ocidente ou da inquietante saúde do mundo, for
preciso inverter a marcha e mudar um bocadinho de vida, onde ir buscar o
discernimento, a vontade, a força, o animo, para actuar? Não sei. Mas sei que
há coisas menos deprimentes de que estar feliz à força.
PS. Miguel
Frasquilho acha – e acha bem – que o investimento é amigo da “estabilidade”.
Mas então porque não há? Que faltará mais para que ele aterre em Portugal?
Título e Texto: Maria João
Avillez, Observador,
24-11-2016
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