Alberto Gonçalves
Não é por conselho do meu
médico de família, o qual aliás desconheço, que em geral não vejo
"informação" política nas televisões. Nessa matéria, confesso
automedicar-me para evitar fenómenos precoces de degeneração mental. No outro
dia, furei o boicote e imprudentemente apanhei com cinco minutos de um
"debate". Moderado por José Adelino Faria, incluía o deputado ou
ex-deputado do PSD José Eduardo Martins, o grande historiador e grande
ex-promessa do trotskismo Rui Tavares e um mocito chamado Adão não sei quê.
A certa altura, o moderador
pede ao mocito que compare o famoso populismo do sr. Trump com o menos famoso
populismo do Podemos, do Syriza e do Bloco de Esquerda. O mocito recusa
compará--los, sob o argumento - cito de cor - de que, ao contrário dos partidos
nomeados, o sr. Trump é anti-semita, e isso, principalmente isso, o mocito não
admite. Aliás, o mocito adverte que desde a eleição americana, e só desde
então, o anti-semitismo regressou em força à Terra.
Não sei se o mocito sofre de
percepção limitada (é burro), pseudologia fantástica (é aldrabão) ou pratica
uma modalidade alternativa de comédia (é génio). O facto é que, mesmo num meio
em que a mentira descabelada é língua franca, não me lembro, nem sequer nas
intervenções do dr. Louçã, de alguém se aliviar de tantos e tão desmesurados
delírios em tão pouco tempo. É verdade que Adelino Faria e Eduardo Martins
tentaram, sem demasiada convicção, desmentir a enxurrada de asneiras. O mocito
permaneceu imperturbável. Os idiotas têm essa vantagem. Ou os charlatães
encartados. Ou os génios.
Não adianta, pois, dizer ao
mocito que o sr. Trump, que será imensas coisas desagradáveis e possivelmente
perigosas, não é, que se saiba, anti-semita, apesar de ter sido apoiado por
gente que o é (há uma diferença). Ou esclarecer o mocito de que a filha, o
genro e alguns dos principais conselheiros do sr. Trump são judeus. Ou elucidar
o mocito sobre a promessa do sr. Trump de mudar a embaixada americana para
Jerusalém. Ou lembrar ao mocito o júbilo do primeiro-ministro israelita ao
congratular o sr. Trump pela vitória.
E ainda que o sr. Trump fosse
anti-semita, de que modo sairia desqualificado da comparação com o Syriza, que
além de coligado com um partido neonazi possui dirigentes que acusam os judeus
de incendiarem - metaforicamente, espero - a Grécia com os candelabros do
Hanukkah? E da comparação com o Podemos, cujos sobas envergam lenços
palestinianos, veneram o Hamas e, na melhor tradição de Goebbels,
"desvendam" os "interesses" judaicos "ocultos"
nos filmes da Disney? E da comparação com o BE, rival dos comparsas acima em
matéria de "anti-sionismo", a versão "correcta" do
anti-semitismo de sempre?
Como o mocito ignora ou finge
ignorar isto, não vale a pena informá-lo de que o anti-semitismo não voltou ao
Ocidente na semana passada: é há muito dominante nos votos da ONU, nos boicotes
de universidades e nas estatísticas dos crimes de ódio. Também não vale a pena
aguardar que o poder, qualquer poder, ganhe vergonha e feche uma RTP hoje quase
totalmente ocupada por funcionários da propaganda oficial: o mocito é apenas um
entre inúmeros moços de recados. Mas quando orgulhosa e descaradamente referem
o célebre "serviço público", podiam explicitar o "público"
que servem. Pensando melhor, não é preciso: já fazemos uma ideia.
A criança na primeira fila
Não é costume divulgar-se as
conversas privadas entre estadistas. O breve - e, por causa do embaraço,
interminável - pedacinho conhecido do encontro do nosso presidente com a rainha
da Inglaterra mostram porquê.
Despachado o protocolo
("É uma honra" e tal), o prof. Marcelo lembra as visitas de Isabel II
a Portugal e desata logo a chamar velha à senhora, ao notar que aquando da
primeira visita ele era uma criança. Pasmada com tamanha falta de tacto, a
rainha adopta o sarcasmo que tenta manter até ao fim daquela espécie de
diálogo: "Acredito..." O prof. Marcelo, porém, não apanha a indirecta
e prossegue impávido, agora a descrever o cenário: "O Terreiro do Paço,
aquela grande praça..." E a rainha, a fingir que em 59 anos não voltou a
pisar outra praça nem a pensar noutra coisa: "Sim..." E o prof.
Marcelo: "A carruagem..." E a rainha, divertida por alguém imaginar
que ela recordaria uma carroça específica: "Sim..." E o prof.
Marcelo: "Com o general Craveiro Lopes..." E a rainha, que
inexplicavelmente não parece ter presente essa incontornável figura da história
contemporânea, ameaça trocar o sarcasmo pelo receio: "Hum, hum." Em
roda livre, o prof. Marcelo desce ao pormenor ("Eu estava lá, em criança,
na primeira fila"), na esperança de que Isabel II o interrompesse: "O
pequenito com suspensórios? Ai era você?" Mas a rainha, quase em pânico,
lança um "A sério?" e, enquanto dá um passo atrás, pensa: "Ele
tem de estar a brincar!" Nisto, o prof. Marcelo, que só brinca, salta para
a visita de 1985, na qual, garante, foi convidado para jantar no Britannia
porque liderava a oposição. Não liderava nada, provavelmente ninguém o convidou
e, a julgar pelo fim abrupto do vídeo, de certeza que o encontro acabou aqui, com
a monarca em fuga a gritar por auxílio ("Ó da guarda!", como diria
Craveiro Lopes).
Moral da história? A pândega
com Fidel mostrou que o prof. Marcelo devia visitar exclusivamente torcionários
tropicais, onde os "afectos" não destoam. Vergonha por vergonha, pelo
menos os ensaios do dr. Sampaio não passam a fronteira.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 20-11-2016
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