Reinaldo Azevedo
As sociedades só prendem pessoas, nas
democracias, porque uma ideia média do que é o bem comum estabelece um orbital
em que podemos transitar
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Detalhe de “O Triunfo da
Morte”, de Pieter Bruegel
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Não existe, sem querer fazer
trocadilho tosco, bala de prata nesse caso dos presídios. Não existe “a” ação,
“a” determinação, “o” ato. Trata-se de um conjunto de medidas. E é preciso
tomar um cuidado extremo, nessas horas, para que não se colham resultados
contraproducentes — vale dizer: para que a tentativa de solução não resulte em
ainda mais desastre. O governo federal tem caminhado bem até aqui nas medidas
paliativas. E não houve tempo ainda para tomar as de outra natureza.
Deixemos claro a questão
central, a partir da qual se forma a desesperadora malha de complexidades. Um
país em que se matam, por ano, mais de 50 mil pessoas — e é impressionante que
isso choque cada vez menos — está fadado a ter presídios que são a sucursal do
inferno, dominados por gangues. Ocorre que o sequestro das casas de detenção é
só um capítulo do poder crescente do crime, que ocupa hoje vastos territórios
nas grandes cidades brasileiras.
Uma resposta a essa questão
das cadeias parece, e é, mais urgente do que libertar áreas do país hoje sob a
influência do crime. E assim é por uma razão simples: se vocês pensarem bem, os
presídios são a expressão máxima da força do estado. Afinal, é ali que os
direitos individuais e o habeas corpus são reduzidos à sua mínima expressão em
favor do pacto social. Se e quando permitimos que os criminosos se apoderem
desses lugares, estamos, na prática, abrindo mão da soberania do estado
democrático e rendendo-o, com todo o seu aparato repressivo, aos criminosos.
Sim, é intolerável que chefes
de gangues e máfias dominem os morros, as periferias e as áreas pobres das
grandes cidades. Isso tem de acabar. É tarefa para ontem. A deformação
compromete a qualidade da democracia por definição: afinal, vigoram nessas
regiões leis que não emanam do estado brasileiro. A cidadania é aviltada. A
individualidade é aviltada.
Mesmo assim, retomar os
presídios é tarefa ainda de maior urgência. Atentemos para o simbolismo:
naqueles prédios estão concentrados os aspectos repressivos dos três Poderes da
República. As sociedades só prendem pessoas, nas democracias, porque uma ideia
média do que é o bem comum estabelece um orbital em que podemos transitar. Fora
dele, é preciso arcar com as consequências. Nas democracias, pois, por
imposição da lógica civilizatória, prisões não podem ser calabouços. E as
nossas são.
Oh, meus caros, avancemos
ainda um tanto em outras considerações. Os nossos presídios são hediondos. Mas,
em regra, os nossos hospitais públicos também. Os nossos presídios são a cloaca
do diabo, mas as nossas escolas também. Os nossos presídios transformam em
folguedos infantis os relatos os mais apavorantes do homem como lobo do homem,
mas não pensam coisa muito diferente aqueles que dão de ombros: “São todos
bandidos; que se matem!”. Isso é condescender com o princípio da morte.
Em momentos assim, é preciso
que a gente não se deixe levar pelo pessimismo cínico: “Esse país não deu
certo! Não adianta! Nada presta”. Os que enveredam por aí costumam se eximir de
qualquer responsabilidade, jogando a culpa, confortavelmente, nos ombros
alheios. Quem nunca ouviu um interlocutor a censurar “os brasileiros” por isso
ou por aquilo? Sim, “brasileiros” são sempre os outros, não é mesmo?
Não estou aqui a socializar as
responsabilidades. Se todos são culpados, então ninguém é… Meu ponto é outro.
Chegamos a um momento perigoso. A nossa geração — nós, os do presente —
experimenta o “turning point”. Para o bem ou para o mal. Ou reunimos os valores
e os princípios da democracia para dar uma resposta ao que está em curso, ou o
crime se apodera de nacos ainda maiores do estado brasileiro, numa trajetória
que pode não ter retorno.
Precisamos, de saída, nos
livrar de duas taras intelectuais paralisantes. A de esquerda: não há resposta
enquanto não pusermos fim a todas as iniquidades sociais. A de direita: os bons
não são obrigados a arcar com o custo da escolha dos maus. As duas concepções
são o que o grande poeta Bruno Tolentino chamava de “o mundo como ideia”. Não
há vida nesses ambientes. Esse é o reino dos mortos.
Recuperar o controle dos
presídios requer recursos. Hoje, eles não existem. Não há gestão possível das
contas que possa liberar o necessário para resgatar as fatias que perdemos do
Estado de Direito. Recuperar o controle dos presídios requer, e desculpem o
termo modernoso e já meio cafona, “ressignificar” o princípio do encarceramento
— e não para prender menos, não… Eis outra falácia, à qual ainda voltarei: em
boa parte do Brasil, é preciso prender mais.
Encerro assim: o principal
risco que corremos hoje é haver, como houve em outras circunstâncias — e não é
segredo para ninguém —, uma espécie de acordo tácito entre franjas do estado e
as organizações criminosas. Entendimentos feitos ao arrepio da ordem democrática
estabeleceriam, assim, a “pax” nos presídios. As gangues deixam de desafiar
abertamente o estado, e este, em contrapartida, faz vistas grossas às suas
ações ou passa a viver com ele uma espécie de mutualismo.
Por esse caminho, chegamos
aonde estamos.
Por esse caminho, chegamos aos
50 mil homicídios.
Foi essa a escolha que nos
abriu a vereda para a Terra dos Mortos.
Título, Imagem e Texto: Reinaldo Azevedo, VEJA,
18-1-2017
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