Alexandre Homem Cristo
Sob pressão, o governo atira com acusações
falsas. Foi assim sempre que algo correu mal. Este comportamento constitui uma
irresponsabilidade muito mais indigna do que qualquer jantar no Panteão.
Com tanto tema sério por
discutir, a utilização do Panteão Nacional para um jantar do Web Summit não
passaria de um fait-divers se o governo tivesse arrumado o assunto – reconhecia
a decisão da DGPC e ou a defendia ou garantia que não voltaria a acontecer. Mas
o governo decidiu ir por outro caminho, cometeu dois erros e tornou o caso digno
de discussão.
O primeiro erro foi
político: António Costa tentou descartar a sua administração de responsabilidades –
remetendo para um enquadramento legal datado de 2014, como quem aponta o dedo
ao anterior governo. O problema da acusação, já se percebeu, é que esse mesmo
enquadramento determina que “compete à Direção Geral do Património Cultural
(DGPC) decidir”, para cada solicitação e de acordo com parecer dos serviços,
sobre o arrendamento ou não do monumento nacional em causa. Mais: o
enquadramento legal de 2014 define critérios para essa ponderação, nomeadamente
que deve salvaguardar-se sempre o prestígio e a dignidade dos monumentos
nacionais. E clarifica que a DGPC “reserva-se o direito de não autorizar o
aluguer”.
Ou seja, só houve jantar do
Web Summit no Panteão porque, em 2017, alguém na DGPC avaliou o pedido de
utilização do monumento e considerou que a festa não feria com a dignidade do
monumento. Consequentemente, a violência verbal de António Costa (que
qualificou a situação de “indigna” e “ofensiva”) acaba por ser,
involuntariamente, dirigida contra a atual DGPC e a sua tutela política da
Cultura. O caso político (desnecessário) que se criou foi imposto por António
Costa contra si mesmo: agora que avaliou a situação como “indigna” e disparou
erradamente contra o anterior governo, que condições políticas restam a quem efetivamente
deu a autorização para a realização do jantar? Nenhumas.
O segundo erro do governo é de
políticas públicas: não existe uma estratégia assumida para o arrendamento dos
monumentos nacionais, apenas uma postura reativa, que promete remover do
despacho de 2014 os casos que derem polémica nas redes sociais. Achar que isso
é solução é não ter noção do que se está a discutir.
Antes de existir enquadramento
legal próprio, já havia eventos em monumentos nacionais. Em 2003, por exemplo,
usou-se o Panteão como cenário teatral para o lançamento de uma das obras da coleção
Harry Potter. Em 2013, fez-se lá um jantar empresarial e, por certo, muitos
outros eventos lá tiveram lugar antes de 2014. Isto diz-nos que o problema não
foi criado pelo despacho de 2014 – pelo contrário, esse despacho procurou
corrigir o problema, regulamentando uma atividade que era praticada sem
enquadramento próprio. Ora, sabe-se que o BE e o PCP são contra o arrendamento
de monumentos históricos. Mas também se sabe que a DGPC e o ministro da Cultura
são a favor: em julho deste ano, perante um outro caso polémico (filmagens no
Convento de Cristo), a DGPC informou que é seu entendimento “que a utilização
dos Museus, Palácios e Monumentos sob sua tutela pode e deve ser melhorada”. Ou
seja: o despacho não é o problema, uma vez que esta atividade é para manter,
embora revendo os critérios (o que é expectável após três anos em vigor).
Rever como: tornando a lista
de monumentos nacionais abrangidos mais restrita, ou limitando as utilizações
possíveis? É esse o ponto. É que, há quatro meses atrás, a DGPC informou ter
sido iniciada uma revisão do Regulamento de Utilização de Espaços “com
o propósito de uniformizar critérios de utilização e reforçar as exigências às
empresas que solicitam o aluguer”. E avisou também que essa revisão seria
liderada por uma “unidade interna permanente”. O que aconteceu desde então –
essa unidade foi criada, quantas vezes reuniu, a que conclusões chegou? Não se
sabe. Só se percebe é que tudo continuou como dantes – tornando manifesto que,
do ponto de vista do governo, a alteração não era assim tão prioritária.
Chegados aqui, concluiu-se o
que já se desconfiava: quando submetidos a pressão mediática, António Costa e
os seus ministros atiram a incompetência para debaixo do tapete e agem como se
o país vivesse no Twitter – baralhando os dados com acusações falsas, com
#aculpaédoPassos, com alheamento às suas responsabilidades, com soluções
bruscas e irrefletidas. Já havia sido assim em Tancos, em Pedrógão Grande, em
Leiria, no Hospital de São Francisco Xavier ou onde algo correu mal. O maior
problema é esse: esta adesão à propaganda-fake-news das redes sociais constitui
uma irresponsabilidade muito mais indigna e ofensiva do que qualquer jantar que
se realize no Panteão.
Título e Texto: Alexandre Homem Cristo, Observador, 13-11-2017
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