Alberto Gonçalves
Para cúmulo, tamanha maravilha
aconteceu no exato momento e na exata cidade onde morrem pessoas por via da
“legionella”, onde um ministro anuncia o aumento de IRC e onde, a pedido de
corporações, a polícia enxota os condutores da Uber e similares que tentam
aproximar-se do aeroporto (sou testemunha interessada: aterrei em Lisboa por
motivos que não vêm ao caso e apenas o terceiro carro arriscou apanhar-me).
Segundo a propaganda, a Web Summit mostra a nossa abertura à inovação e à iniciativa
e ao investimento. A sério? Se no ano que vem resolverem transladar a festança
para Caracas, as diferenças serão mínimas. Uma “hashtag” promocional jurava:
#thisisportugal. E o pior é que é verdade.
Sobretudo, a moderníssima Web
Summit aconteceu no tempo e no lugar em que, a propósito da revolução de 1917,
o líder do PCP proclamou, aliás pela enésima vez, as portentosas virtudes da
União das Repúblicas Socialistas e Soviéticas. No Coliseu dos Recreios, pelos
vistos também receptivo à comemoração de revoluções sanguinárias e à “stand up
comedy”, Jerónimo de Sousa falou e disse. Disse que a URSS transformou a “velha
Rússia” num paraíso “altamente desenvolvido, mais industrializado e socialmente
mais avançado”. Disse que foi “a pátria dos sovietes” a primeira do mundo “a
desenvolver como nenhum outro, direitos sociais fundamentais”. Disse que a URSS
teve um “inquestionável papel de força motriz de progresso e da paz a nível
mundial”. Disse que o mundo está pior sem a URSS. Disse que “o socialismo é preciso”
e é uma “exigência da atualidade e do futuro”. Disse que o capitalismo é um
“sistema explorador, opressor, agressivo e predador”, que está “a conduzir o
mundo para a barbárie”. Disse que o fim da URSS nada teve a ver com a Revolução
de Outubro e os seus fundadores, e sim com o “modelo de construção do
socialismo” que se afastou do “ideal e do projeto comunistas”. Disse que o
“combate continua”.
O sr. Jerónimo disse estas
doçuras e os “media” reproduziram-nas sem escrúpulos nem escrutínio, como se o
sr. Jerónimo tivesse recomendado um restaurante em Évora ou os congratulado os
bombeiros voluntários de Coimbra. As “redes sociais”, que se escandalizam
diariamente com extraordinárias insignificâncias, não se escandalizaram com o
elogio fervoroso do maior ataque organizado à humanidade que a História já
registou. Ninguém saiu à rua em protesto. Ninguém estranhou. Ninguém, ou quase
ninguém, pensou que os desabafos do sr. Jerónimo, afinal um voto de fé na
brutalidade, na fome e no homicídio enquanto métodos de regulação das massas,
fugissem da normalidade quotidiana de um regime supostamente democrático. No
fundo, o sr. Jerónimo informou os portugueses de que não descansará até que,
espero que com nuances, estes sofram o que as incontáveis vítimas do comunismo
sofreram e sofrem. E, do alto da sua peculiar apatia, que os leva a
envergonhar-se dos “twits” do sr. Trump e a orgulhar-se da miséria que trazem
por casa, os portugueses acham bem.
Permitam-me evitar equívocos.
Ao contrário dos deuses do sr. Jerónimo e dos fiéis do sr. Jerónimo, nunca
passaria pela minha cabeça impedir um sujeito de confessar o que vai na dele. A
questão, obviamente, não é o sr. Jerónimo proferir insanidades, mas a recepção
que as insanidades suscitam. Em sociedades civilizadas, o louvor de genocídios
merece repulsa, sarcasmo ou pena do maluquinho que assim se exibe em público.
Em Portugal, homenagear psicopatas integra a categoria das notícias
“habituais”, a título de opinião discutível ou, quiçá, esclarecida.
De resto, o sr. Jerónimo não é
um maluquinho, ou pelo menos um maluquinho comum. É o chefe do terceiro ou
quarto partido nacional, o qual rivaliza com outro (?) partido leninista nos
votos, nos deputados, na demência e na ascendência sobre o bando que, descarada
e oficialmente, finge governar-nos. Se se tratasse de um lunático com bombo às
voltas ao coreto – e fosse tratado em conformidade –, a deplorável figura a que
o sr. Jerónimo se presta podia esgotar-se em si mesma, sem que daí viesse
qualquer mal ao mundo. Por azar, a misteriosa respeitabilidade de que o sr.
Jerónimo desfruta compromete o país, ridiculariza o país e torna o país
cúmplice de uma vasta parte do mal que, durante o último século, o mundo
suportou de facto. Uma coisa é certa: a Web Summit é óptima para mostrar ao
“estrangeiro” aquilo que somos. E quem quis ver viu que somos isto.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
11-11-2017
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