terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Dublê de retardado

Aparecido Raimundo de Souza

“Não sei se paro onde estou ou continuo mentindo a mim mesmo que você não existe”.

VÍNHAMOS, AO ACASO, pela estrada do tempo e, de repente, paramos, num mesmo ponto do destino. Você me olhou. Eu lhe fitei longamente. Naquele instante, me senti pequeno diante de sua imensa beleza. Enquanto isto, um orgulho empolgante encheu de serenidade meu coração de adolescente. Frente a frente, você e eu. Eu e você. Apesar disto, continuamos mudos. Calados. Dois bobocas diante do inusitado. Seria espanto? Medo de um fora? Amor à primeira vista? Talvez!

Lembro que você abriu os lábios, lentamente, como se fosse dizer alguma coisa, todavia, nada saiu de sua garganta, senão a presença maciça de um silêncio constrangedor. Por minha vez, tentei dizer algo, balbuciar um “olá”, um “bom dia”, mas, igualmente, me faltou a coragem dos destemidos. A timidez foi tanta, tamanha, tacanha, embaraçosa, que assim, do nada, tomou conta de tudo e me fez recuar diante da primeira investida.

Lembro mais. Você continuou a me olhar. De frente. A me devorar numa fome muda e silenciosa. Sem piscar. Parecia pregada ao chão, como uma estátua recém-posta numa praça movimentada. Por momentos, tive a sensação de que seus olhos queriam me despir de todo o tempo (o seu tempo) vivido em vão. Atraído pela cintilação do seu rosto, pela pureza brilhante de seu olhar, me envolvi em você.

Numa rajada, me precipitei como a primavera abraça as flores, dando a elas o alor da nitescência colorida da existência de Deus. Todas as minhas desilusões, de repente, num abalo, se dissiparam. As horas de angustias que me perseguiam sofreram um novo colorido. Num lapso de ternura, todo meu passado desmoronado se reavivou fulgurante frenteado a sua magnificência.

Vivo me senti de volta à vida. Encorajado como nunca. Desejei, então, que aquele instante que nos unia num abraço sem aperto, numa troca de emoções sem a centelha do toque fosse eterno. Que nada, nem ninguém, viesse agredir o encanto bucólico que se formou em torno de nós, à nossa roda, como um escudo invisível e consequentemente intransponível.

Contudo, sempre há um “contudo”, num lance incômodo, inesperado e intempestivo, uma espécie de nuvem confusa, difusa, me envolveu o olhar. Do nada, o tudo lhe encobriu. Não lhe vi mais. Nem seu sorriso, seu rosto de princesa. Como um Zé Ninguém, voltei a ficar perdido dentro de meus velhos devaneios, acorrentado em pensamentos embaralhados, tremendo, na verdade, da cabeça aos pés. Um vazio imenso se fez pesado e denso. Quando dei por mim, o revés havia tomado conta de sua silhueta, enquanto um abismo sem proporções me levava de regresso ao fundo do poço. 

Num abrir e piscar de vertigens incoerentes desabou minha vã esperança sobre os pés... e então  me senti sem chão seguro onde pisar.  Meu Deus! Vínhamos, me recordo bem... vínhamos pela estrada da vida e, de repente, paramos num mesmo ponto do destino. Paramos, estancamos, num mesmo ponto do destino.

Você me olhou. Eu lhe fitei longamente, desesperadamente, como alguém que pede socorro. Coisas do destino. O mesmo que a pouco nos uniu, da mesma forma nos roubou o instante mágico de felicidade plena. Fiquei sem sua presença. Vazio, oco por dentro, envolto em tediosa e fria solidão...

Quando deparei, tempo depois, não sei quanto tempo, com a realidade brutal, percebi que estava sozinho outra vez. Imagine! Como são as coisas. Passei parte de minha vida buscando encontrar alguém como você. Alguém que conseguisse me devolver à alegria plena de viver, de acreditar num futuro melhor e menos esmagante.

Nosso encontro durou pouco mais que um minuto. Na verdade, esse minuto me pareceu uma eternidade. Por essa razão, o amor, meu amor, o amor que senti, até a morte há de ser unicamente seu. Os meus desejos mais veementes, e prementes, escravo dos seus caprichos de mulher encantadoramente sedutora.

Viverei da sua lembrança. Aliás, a vida se resume nisto: um conjunto de recordações girando em torno de uma saudade qualquer, uma dor insana doendo forte, muito forte dentro do peito. Você será o arroubo, a feitiçaria da saudade. Seu cheiro e seu perfume seguirão comigo, como também a fascinação da sua meiguice.

Você será, pois, a deusa eterna, como imorredouras serão as suas recordações em meu âmago em frangalhos, literalmente despedaçado. Quem diria! Desejei lhe ocultar num relance sedutor, lhe prender de todos os pequenos impasses que pudessem surgir das pessoas que circulavam em nosso entorno. Cheguei a ponto de lhe imaginar acorrentada ao meu “eu” e perceba só que barbaridade... imaginei sermos um só corpo, um só coração. Que idiota fui! Que idiota sou e que idiota serei para o resto de meus dias!...

Idiota sim, porque nada houve, entre você e eu, além daquele esbarrão inconsequente e inexplicável. Não houve adeus, não existiu troca de palavras, não pensamos em amanhã. Sequer houve agora. Não houve, em resumo, absolutamente nada, sequer um “até breve” para se guardar dentro de um lugar secreto, trancado a sete chaves.

Acho que vivi um sonho. Nada aconteceu. Você nunca chegou vinda de lugar nenhum. Nem eu. Será? Então, o que aconteceu? Um pesadelo? Uma visão? Talvez! Um sonho? Um sonho fica melhormente explicado.  Se sonho foi destes que despertam das cinzas. Se pesadelo, destes que, de uma esperança ínfima e remota, chega sem avisar e invade nosso corpo, e, da mesma forma, se dissipa no ar sem deixar algo de concreto ou sólido.

Ao me refazer, depois de tudo, sacudi as incertezas e segui adiante, como um joguete do destino. Como um embrulho pesado que se deixa ser levado, arrastado, sempre na esperança de que numa próxima esquina encontre, ou me ache ou lhe reveja como ainda há pouco.

Quem me dera lhe capturar de novo noutro espaço irreal de conturbação mental, entre o sono (sono?!) e o estado céptico de estar verdadeiramente acordado. Você! Você, o bálsamo que me deu um lampejo de luz. O fato é que vínhamos, ao acaso, pela estrada do tempo, e, de repente, paramos num mesmo ponto do destino. Você me olhou. Eu lhe fitei longamente. Não, decididamente nada disto aconteceu. Se não aconteceu, como naquele instante, me senti pequeno e vaidoso diante de sua beleza?

Não importa o que verdadeiramente aconteceu. Ou se aconteceu. Naqueles poucos segundos de torpor, verdade ou não, eu vivi, na realidade, um curto espaço de lucidez que jamais pensei realmente pudesse existir. Ou acontecer. Mas existiu.  Existiu?! Kikikikikiki...

Dentro disto, sonho ou não, verdade ou mentira, ilusão ou apenas fantasia da minha mente doentia, eu vivi e isto faz toda a diferença. Eu vivi. Dentro deste desvairamento eu vivi o melhor momento de minha própria e paranoica imaginação.
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.  19-2-2019

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Um comentário:

  1. Adoro esse duelo de paixões ora de um ora de outro.
    Eu vejo que todo apaixonado, é um psicopata do amor.
    A mente faz coisas distintas da consciência, isso poucos entendem.
    O amor bate nela, agride ela, machuca ela, sua consciência diz que não serve e sua mente a engana.
    Ele ama ela, machuca-a e diz que ela não será de mais ninguém.
    Sua consciência sabe que um dia ela vai partir, sua mente não vai deixar.
    Nos encontramos na estrada do tempo, nos separamos no mesmo caminho ou em caminhos diferentes.
    Dizer eu te amo é uma reação mental, amar realmente, conscientemente é o ápice da amizade e tolerância.
    Você não viveu, verdades, mentiras ou ilusões, passou incólume por elas.
    Nós passamos pelo passado das mentiras, verdade sonhos e ilusões, somente percebemos quando sentimos saudades.
    Lembrando Belchior, " o passado é uma roupa velha que não nos serve mais".
    Escrever ambiguidades num texto, o autor quer dissimular no contexto a verdade, para enganar o leitor.
    Não a deixe nessa viagem sozinha, pegue seu passaporte de coragem e pegue seu voo para Xangri-lá, ela espera por um atalho.
    fui...

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