Alexandre Homem Cristo
Para os comunistas, não é concebível que as
lutas dos trabalhadores se possam travar fora da esfera de influência da CGTP –
isto é, do próprio PCP. Quem vier de fora é um inimigo.
A esquerda deixou de defender
os pobres dos bairros operários. A greve demonstra-o: eles estão órfãos de
representação política – maltratados por patrões, esmagados pelo Estado,
rejeitados pela voxpop. Os motoristas de transporte de matérias perigosas ganham 630 euros de salário-base. Com as horas
extraordinárias, o valor pode chegar até perto dos 1000-1200 euros. Mas, para
tal, trabalham entre 12 e 14 horas diárias, com um horário semanal que ronda as
60 horas ou mais. É praticamente o dobro do horário da função pública (35
horas). Acresce que, por necessidade profissional, passam noites longe da
família, com o consequente desgaste pessoal e os custos financeiros que isso
representa – e cujas despesas as empresas têm de devolver (e que
artificialmente inflacionam as folhas de vencimento). Empresas que fazem parte de
negócios multimilionários e extremamente rentáveis, como é o caso das
petrolíferas. Ou seja, estes motoristas estão no fundo da cadeia alimentar do
mercado de trabalho. São mal pagos embora trabalhem muito mais horas do que o
normal; não gozam de prestígio social embora sejam fundamentais para o
funcionamento da economia e dos serviços públicos; têm uma profissão que
implica riscos (transportam “matérias perigosas”) embora isso não se reflita
adequadamente na sua remuneração; fazem parte de negócios multimilionários
privados embora sejam remunerados abaixo dos padrões nacionais. E, à conta de
uma greve que visa melhorar as suas condições de trabalho (como seria expectável
numa greve), ficaram sozinhos contra o país.
![]() |
Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP |
Esse isolamento tem uma enorme
relevância política, em particular na esquerda, o campo ideológico onde seria
de esperar uma adesão imediata à sua causa. Repare-se: é difícil imaginar um
caso que encaixasse melhor na histórica defesa dos direitos dos trabalhadores
que os partidos clássicos da esquerda lideraram. E, no entanto, a esquerda
parlamentar tem sido um feroz adversário dos grevistas. No PCP, os
sindicalistas que lideram a greve não têm a sua legitimidade reconhecida e são institucionalmente diabolizados pelo comité central. Na
prática, não é concebível aos comunistas que as lutas dos trabalhadores se
possam travar fora da esfera de influência da CGTP – isto é, do próprio PCP. Ou
seja, esta sua instrumentalização da “luta de classes” é uma manifestação de
clubite: os direitos dos trabalhadores só se defendem através da CGTP – e quem
vier de fora é um inimigo. Mas há mais. Também no BE o posicionamento é
contraditório: após silêncios, hesitações e mais silêncios, lá surgiram umas
críticas discretas ao governo. Um taticismo envergonhado e simples de explicar:
os bloquistas não querem hostilizar o PS e também não querem apoiar quem está
do lado impopular, embora reconheçam qual o lado certo. Tudo metido na balança,
a direção do BE vendeu-se por uns votos.
“Votos” será, porventura, a
palavra-chave na estratégia do PS. Em vésperas de eleições, o governo
intrometeu-se na negociação entre patrões e trabalhadores – e escolheu o lado
dos patrões, cuja associação (ANTRAM) tem como porta-voz um militante do PS que este governo já nomeou por duas ocasiões.
Consequentemente, o primeiro-ministro sacou dos mísseis para matar moscas,
recorrendo a uma brutalidade retórica sem igual e exibindo toda a musculatura
do Estado com serviços mínimos preventivos, requisições civis (em menos de 24
horas de greve), detenções de grevistas e uns telegênicos gabinetes de crise,
que colocam ministros sucessivamente no horário nobre dos telejornais – e
fizeram desaparecer tudo o resto: onde está a oposição? É possível que o
exercício de autoridade valha votos e aproxime o PS da meta da maioria
absoluta. Mas a que custo? O direito à greve ficou semiarrasado – Cavaco Silva
teria inveja. De resto, igualmente preocupante e como bem chamou à atenção Mafalda Pratas, o governo colocou
militares e recursos do Estado ao serviço das empresas privadas, com muitas
horas de trabalho “gratuitas” que neste momento estão a beneficiar
financeiramente essas empresas – sem que essa subsidiação tenha sido explicada
pelo primeiro-ministro. Os patrões, que durante tanto tempo se têm recusado a
aumentar os baixos salários dos seus motoristas, só se podem estar a rir:
acabaram financiados pelos contribuintes.
Haverá muitas lições a retirar
destes dias de greve. Sobre a instrumentalização do Estado para a propaganda
eleitoral, como fez o PS. Sobre as consequências das decisões do governo para o
exercício do direito à greve. Sobre a inexistência de oposição política e o
consequente desequilíbrio do regime. Mas a mais importante lição de todas é
esta: a esquerda portuguesa abandonou o que ainda tinha de pureza ideológica e
deixou formalmente de representar os mais pobres, a “classe trabalhadora”,
nomeadamente os colarinhos azuis e quem vem dos bairros operários. São esses os
grevistas que nestes dias ficaram sozinhos. Fazem parte de uma população
tradicionalmente de esquerda, mas que PS-PCP-BE esqueceram, porque não encaixa
nas causas identitárias da esquerda moderna, nem se revê no progressismo social
das causas fracturantes. E porque também não tem peso eleitoral (por falta de
organização) que justifique uma palavra de conforto nos discursos de PCP, BE e
PS, sempre apontados a grupos de eleitores (como os funcionários públicos). Com
Marcelo a jogar no tabuleiro da reeleição e uma direita que perde por falta de
comparência, estes portugueses de colarinho azul, como esta greve demonstra,
são os verdadeiros órfãos de representação política do nosso tempo –
maltratados por patrões, esmagados pelo Estado, rejeitados pela voxpop. Não
importa se têm razão (e alguma até têm), já que ninguém os ouve.
(Onde é que já vimos isto? Por
exemplo, nos EUA, no desligamento dos democratas em relação à cintura industrial americana, que ajudou a eleger Donald
Trump por se rever na sua campanha antissistema e no seu apelo à produção made
in USA – e para descarregar a raiva. Não faltam provas de que o vazio de
representação política é facilmente preenchido por populismos, incluindo na
radicalidade das ações sindicais – afinal, quem se sente ignorado pelo sistema
terá maior inclinação para furar as regras deste. Eis um aviso que os partidos
têm sucessivamente ignorado, à esquerda e à direita: quem semeia ventos
geralmente colhe tempestades.)
Título e Texto: Alexandre
Homem Cristo, Observador,
15-8-2019
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