Paulo Tunhas
António Costa precisa, quanto mais não seja
por causa da dúbia origem do seu poder, de afirmar constantemente a sua
autoridade. Daí também ter encenado um espetáculo sem par.
A atual greve dos camionistas
coloca pelo menos uma questão interessante: até onde é que se pode lixar
democraticamente a vida dos outros? E, ao mesmo tempo, oferece-lhe uma resposta
provisória: até esse direito entrar em conflito com os interesses do poder, que
podem, ou não, coincidir com os interesses da maioria das pessoas. Se as greves
não afetarem o poder e aqueles que direta ou indiretamente o detêm, então, como
todos sabemos, constituem um direito indisputável, inteiro e universal, por
mais danos que provoquem à vida de um número muito substancial de indivíduos.
Se afetarem o poder, adquirem magicamente uma legitimidade apenas relativa e
pronta a ser condicionada ao gosto desse mesmo poder.
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Foto: António Antunes/RTP |
Toda a gente com dois dedos de
testa percebeu, dado o patente exagero da operação, o teatral da coisa. Ora,
tudo isto é muito lindo, mas mostra várias coisas estranhas que não assinalam
nada de bom. Em primeiro lugar, por que carga d’água não fez o governo tudo
para evitar que a situação chegasse onde chegou? Manifestamente não o fez.
Basta ouvir o representante da Antram, André Matias Almeida, para perceber que
não tem tido conversas minimamente desagradáveis com o governo. E não foi
certamente por faltar ao governo apetência para usar o seu poder no domínio dos
privados ou por um virginal pudor nestas matérias. Em várias circunstâncias
anteriores usou-o e não foi pouco. Quaisquer que sejam as razões, há aqui um
indisfarçável falhanço.
Depois, nunca numa greve tão
pouca simpatia se sentiu na cobertura jornalística pelas razões dos grevistas.
E essas razões não são menos legítimas, longe disso, do que as da maioria das
greves que regularmente perturbam a nossa vida. Pelo contrário, elas colocam em
evidência o problema bem real do dinheiro que é pago àqueles trabalhadores e
não conta para as suas reformas, que resultam declaradamente baixas, porque as
empresas (com as suas razões) não querem pagar ainda mais impostos ao Estado. O
sábio Dr. Centeno é que explicaria isto bem, se estivesse para aí virado.
Em terceiro lugar, o PC e o
Bloco aceitam tudo, com apenas umas ténues simulações de protestação, porque,
primeiro, não são greves deles e, portanto, não lhes interessam, e, sobretudo,
porque nada farão de consequente, em situação alguma, que os afaste da parte do
poder que detêm, e essa parte depende por inteiro do PS, quer dizer, de António
Costa. A artificialidade (a pura instrumentalidade) de certas crenças políticas
vê-se muito bem quando a necessidade do poder nos obriga a calá-las ou, pelo
menos, a transformá-las em sussurros imperceptíveis.
Por fim, o PS goza do direito
extravagante de dizer uma coisa e fazer o seu contrário sem que ninguém lhe
leve isso a mal. O direito à greve é absoluto e relativo ao mesmo tempo. É uma
infelicidade que, por causa do papel decisivo que Mário Soares teve no combate
ao PC em 1975, nos esqueçamos que (à semelhança do seu agora quase extinto
congênere francês, por exemplo) ele se construiu sobre o sonho de uma
democracia mais profunda, real e verdadeira do que a mera “democracia formal”,
que teria assim de ser, de uma maneira ou de outra, “ultrapassada”. É essa
crença, ainda hoje discernível em muita gente, que lhe dá espaço para toda a
espécie de tropelias, imediatamente absolvidas pela superioridade moral que se
encontra, por definição, estabelecida. Mais vale enganarmo-nos com a esquerda
do que ter razão com a direita.
O que toda a atmosfera que
rodeia esta greve revela é a gigantesca hipocrisia que envolve a nossa
sociedade. Um governo que exagera propositadamente e da forma mais despudorada
a sua ação para estrito benefício eleitoral. A extrema-esquerda que apoia o
governo e que se toma de toda a prudência para dizer muito baixinho e com
muitas dobrinhas e esquininhas aquilo que em qualquer outra circunstância
gritaria desalmadamente. O partido do governo que obedece caninamente ao chefe,
porque vê no chefe a condição essencial dos seus interesses. E todos nós, que
queremos é que esta chatice acabe o mais depressa possível, independentemente
da razão ou da falta dela dos grevistas.
Mas: e se tudo correr
diferentemente do que o poder espera – e do que nós, por razões não totalmente
coincidentes, esperamos?
Ah, e há o PSD. Há? Certos
adeptos da percepção extra-sensorial asseguram que sim.
Título e Texto: Paulo
Tunhas, Observador,
15-8-2019
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